A procissão que não existiu

Público, 2010.06.06  José Queirós
Invulgar concentração religiosa na Baixa do Porto ignorada nas páginas do PÚBLICO


Eram muitos milhares de pessoas, iluminando com velas a noite habitualmente deserta da Baixa do Porto e fazendo ecoar nas suas velhas ruas o som das rezas do rosário. Juntaram-se na noite da passada segunda-feira, 31 de Maio, e desfilaram da Igreja da Lapa até à Sé portuense atrás de uma pequeno ícone branco que os católicos conhecem pelo nome de imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima.

Foi uma cerimónia religiosa que nada teve de rotineiro. De acordo com uma reportagem do Jornal de Notícias, à qual devo boa parte das informações que aqui transcrevo, a referida imagem "não era contemplada no Porto desde 1957". Procissões desta dimensão são hoje invulgares nas grandes cidades. Há quem refira, certamente com exagero, que participaram mais de 50 mil pessoas. As fotografias mostram que era, em qualquer caso, um mar de gente, nada habitual em desfiles na cidade. A marcar a natureza pouco comum da iniciativa, a procissão parou em vários pontos do centro urbano, para ouvir as intervenções de individualidades que não associaríamos de imediato às manifestações de devoção popular, como o banqueiro Artur Santos Silva, a editora Zita Seabra e o jornalista Carlos Magno, entre outros que responderam ao convite da diocese do Porto.

Poderá ver-se, neste acontecimento, mais um sinal do que alguns têm vindo a descrever como um renovado impulso do catolicismo português para se afirmar e intervir no espaço público. Talvez. Mas, perguntarão os que estão a ler-me, o que traz o tópico a esta página, quase uma semana depois? É simples: o jornal não dedicou uma linha ao desfile religioso. Para quem o compra para estar bem informado, não se passou nada no Porto na última noite de Maio.

O leitor Miguel Alvim insurgiu-se contra a omissão. Pergunta onde está a "isenção" do PÚBLICO e realça a "impressionante" mobilização conseguida pela diocese "num Norte deprimido pelo desemprego" e "pelo desinvestimento", "onde já se passa fome". E, antes de sentenciar que o jornal "não percebe que anda a leste dos problemas reais dos portugueses", compara a ausência de qualquer referência à manifestação católica com o destaque que teria sido dado, na edição de 1 de Junho, com "eco em primeira página", "ao encontro do primeiro-ministro, em S. Bento, com alguns elementos do lóbi homossexual".

Seria fácil responder-lhe que uma coisa nada tem a ver com a outra, como, de facto, não tem. E que a chamada de capa, tal como a notícia no interior, se refere à entrada em vigor da lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não ao encontro em S. Bento. Ou que o almoço de Sócrates com as chamadas associações LGBT é descrito num único parágrafo de um texto secundário (aliás dedicado a um protesto do lobby anticasamento homossexual por Sócrates não o ter recebido), e na legenda de uma fotografia que, é um facto, se destaca na mancha da página.

Mas parece-me mais pertinente notar um dado objectivo: esse encontro, que pode ser visto como um mero acto de marketing político, encontrou espaço no PÚBLICO, contra zero caracteres e zero imagens para a inusitada concentração católica no Porto. Permitindo que este e outros leitores se interroguem legitimamente sobre os critérios de selecção noticiosa de um jornal que se obriga, no estatuto editorial, a uma "informação diversificada", "correspondendo às motivações e interesses de um público plural".

Dito isto, é preciso explicar que houve um motivo para a omissão. "O PÚBLICO", garante o director adjunto Nuno Pacheco, "não teve conhecimento, nem oficial nem particular", da realização da procissão. "Não é habitual", explica, "noticiarmos procissões: realizam-se muitas no país, cumprindo o calendário eclesiástico normal". À redacção não terão chegado, neste caso, informações que permitissem prever um "acontecimento jornalístico". "Se tivéssemos sabido previamente da procissão e dos seus contornos incomuns", conclui, "teríamos enviado repórteres e teríamos feito cobertura do acontecimento. Não foi, portanto, uma omissão deliberada".

É uma justificação incontornável. Não se sabia, não se podia adivinhar. Não houve critério editorial contestável, apenas ignorância. Eu próprio pude averiguar que não terá havido grande divulgação da iniciativa fora dos meios da Igreja Católica e dos seus órgãos de comunicação. Parece aconselhável que a diocese reveja os seus métodos de divulgação noticiosa.

Ainda assim, sobram-me dois motivos de estranheza. Como é que um acontecimento que ocupa durante um tempo considerável o centro do Porto não chega ao conhecimento da redacção do PÚBLICO? É só um azar que dificilmente se repetirá, ou haverá falhas de organização que devem ser estudadas? E, para terminar, porque é que na edição de 2 de Junho se continuou a ignorar o que acontecera?

Comentários

Rui Cunha disse…
Texto ontem enviado à directora do Público:

Senhora Directora,
Sou leitor do Público desde o seu primeiro número, e actualmente, assinante em HTML. Devo dizer que, excepto em alguns artigos e omissões, tenho concordado com a vossa posição moral, política e considero um jornal isento e sério, duma forma especial durante os anos do vosso director José Manuel Fernandes.
Infelizmente, hoje, saiu um comentário do provedor do leitor que faz parte desses poucos que não posso aceitar, e que até me deixou muito desagradado.
Também eu, tal como o vosso leitor Miguel Alvim, fiquei muito surpreendido por, no dia 2/6, não ter encontrado qualquer referência do Público à procissão de 31/5 à noite no centro do Porto. Esta foi, sem dúvida, uma manifestação que, muito bem diz ele, "nada teve de rotineiro". Muitos e muitos milhares de pessoas tiveram dela conhecimento sem receber qualquer convite e mesmo sem ter ouvido da hierarquia católica qualquer informação. Eu fui um deles.
Concordo inteiramente com o texto do Sr. Miguel Alvim, texto este que está muito bem elaborado e que expõe os principais pontos que eu teria gostado de escrever.
Quando verifiquei a vossa omissão pensei que teria sido propositado, ou pela posição religiosa da vossa nova direcção ou... em resumo, ainda quis de certa forma "desculpar-vos" dela.
Mas, perante o que hoje li, fiquei profundamente desiludido com a má fé ou incompetência da vossa redacção, perante a cínica resposta que lhe deram.
Posso eu acreditar que o Público não tivesse conhecimento da referida procissão, quando pelos vistos (eu não li) o JN soube e noticiou?
Posso eu acreditar que um jornal nacional, com redacção nesta cidade, não tivesse procurado saber as coisas importantes que se passam no Porto, e publique notícias, algumas delas sem interesse algum, nem mesmo para um pequeno bairro?
Posso eu acreditar que a vossa redacção ande pela cidade com os olhos fechados e não tenha visto os cartazes que anunciavam este acontecimento?
Estaria a vossa redacção espera que a hierarquia católica do Porto vos enviasse um convite formal e especial para estarem presentes e noticiarem algo que era da vossa obrigação ter conhecimento?
Se realmente o Sr. Nuno Pacheco e seus companheiros não sabiam que os milhares de portuenses iriam essa noite para a rua, então tenho que rever a minha posição em relação ao elogio que acima fiz.
Ou estão de má fé ou mentem.
Será que o Público se está a deixar contaminar pela facilidade com que os nossos governantes mentem quando algo lhe corre mal, e que, infelizmente, também já temos visto em muitos jornalistas?

Cumprimentos
Rui Cunha
Rui Cunha disse…
Mail enviado ontem para a directora do Público:

Senhora Directora,
Sou leitor do Público desde o seu primeiro número, e actualmente, assinante em HTML. Devo dizer que, excepto em alguns artigos e omissões, tenho concordado com a vossa posição moral, política e considero um jornal isento e sério, duma forma especial durante os anos do vosso director José Manuel Fernandes.
Infelizmente, hoje, saiu um comentário do provedor do leitor que faz parte desses poucos que não posso aceitar, e que até me deixou muito desagradado.
Também eu, tal como o vosso leitor Miguel Alvim, fiquei muito surpreendido por, no dia 2/6, não ter encontrado qualquer referência do Público à procissão de 31/5 à noite no centro do Porto. Esta foi, sem dúvida, uma manifestação que, muito bem diz ele, "nada teve de rotineiro". Muitos e muitos milhares de pessoas tiveram dela conhecimento sem receber qualquer convite e mesmo sem ter ouvido da hierarquia católica qualquer informação. Eu fui um deles.
Concordo inteiramente com o texto do Sr. Miguel Alvim, texto este que está muito bem elaborado e que expõe os principais pontos que eu teria gostado de escrever.
Quando verifiquei a vossa omissão pensei que teria sido propositado, ou pela posição religiosa da vossa nova direcção ou... em resumo, ainda quis de certa forma "desculpar-vos" dela.
Mas, perante o que hoje li, fiquei profundamente desiludido com a má fé ou incompetência da vossa redacção, perante a cínica resposta que lhe deram.
Posso eu acreditar que o Público não tivesse conhecimento da referida procissão, quando pelos vistos (eu não li) o JN soube e noticiou?
Posso eu acreditar que um jornal nacional, com redacção nesta cidade, não tivesse procurado saber as coisas importantes que se passam no Porto, e publique notícias, algumas delas sem interesse algum, nem mesmo para um pequeno bairro?
Posso eu acreditar que a vossa redacção ande pela cidade com os olhos fechados e não tenha visto os cartazes que anunciavam este acontecimento?
Estaria a vossa redacção espera que a hierarquia católica do Porto vos enviasse um convite formal e especial para estarem presentes e noticiarem algo que era da vossa obrigação ter conhecimento?
Se realmente o Sr. Nuno Pacheco e seus companheiros não sabiam que os milhares de portuenses iriam essa noite para a rua, então tenho que rever a minha posição em relação ao elogio que acima fiz.
Ou estão de má fé ou mentem.
Será que o Público se está a deixar contaminar pela facilidade com que os nossos governantes mentem quando algo lhe corre mal, e que, infelizmente, também já temos visto em muitos jornalistas?

Cumprimentos
Rui Cunha

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