A estranha vida dos anacronismos

Paulo Tunhas
Observador 10/3/2016

O gesto de não aplaudir o ato de posse do Presidente significou algo grave: a exterioridade declarada desses partidos em relação ao regime. Um regime onde, anacronicamente, ocupam hoje posição central
Um dos melhores anacronismos da história do cinema encontra-se certamente num dos diálogos de The Lion in Winter, um filme (nada mau, seja dito de passagem) de 1968 com Peter O’Toole e Katherine Hepburn. Hepburn, que representa o papel de Leonor da Aquitânia, quando interrogada sobre a intensidade dos seus amores passados com Henrique II de Inglaterra (O’Toole), responde displicentemente: “Oh, isso é pré-história!”. O mérito deve-se sem dúvida a Hepburn, que era célebre por intervir muito, e consta que muito autoritariamente, nos diálogos dos seus filmes. Mas pôr na boca de uma personagem do século XII, como se alguém lhe tivesse pessoalmente perguntado algo sobre os seus amores com Howard Hughes, a palavra “pré-história”, é obra.
Em matéria de anacronismos, no entanto, os tempos presentes quase fazem empalidecer o de Hepburn. Aparecem coisas do passado que, de um momento para o outro, se instalam como hábitos do presente e que passam a tomar conta do dia-a-dia, como se nada fosse. Não digo que um acronismo aqui e ali não tenha graça. Por exemplo, perto de minha casa há uma papelaria que parece ter sobrevivido intacta à mudança dos tempos desde quase a minha infância. Tudo se encontra na mesma ordem que eu sempre conheci. Até os empregados – e isso, admito, é inquietante, e parece saído de um livro de Stephen King – é como se não tivessem envelhecido ao longo das últimas décadas. Entra-se lá dentro e tem-se o sentimento de voltar aos tempos do Prof. Marcelo Caetanto. O espírito das “Conversas em família” ainda paira por lá. Um véu tépido de respeitinho com pouca luz, sem ruído ou vestígio de desordem, vagamente enjoativo. Mas, enfim, pode-se entrar e sair, e aquilo não berra estridentemente para fora.
Mas há outros anacronismos mais agressivos e perigosos, porque tendem, quando tomam conta da vida pública, a tornar mais difícil a nossa percepção da realidade. Tornam-na baça e fazem tudo para nos ocultar os problemas do presente. A linguagem não engana. É uma linguagem vinda do passado, que sobreviveu intacta no comércio de pequenos grupos e que agora veio à tona com força e desejo de poder. Estou a falar, é claro, da linguagem do PC e do Bloco de Esquerda. O PC e o Bloco sempre falaram aquela linguagem, é claro, o último vestindo-a, aqui e ali, com as roupas de umas “causas fracturantes” que disfarçavam os arcaísmos mais gritantes. Mas a conversa, tirando os sindicatos, no caso do PC, situava-se na periferia do espaço público. Agora não. Graças a António Costa e às suas esquisitas alianças, voltou ao centro. Décadas depois de ter reinado, voltou ao centro.
Qual é essa linguagem, que os telejornais nos fazem entrar em casa em doses maciças diariamente? É a velha linguagem, de onde uma certa violência nunca se encontra arredada, da oposição ao regime democrático e da falta de respeito pelas instituições desse regime que, no fundo, continua a parecer-lhes ilegítimo. E a linguagem, é claro, é acompanhada de actos. Quanto mais não seja, e à falta de melhor, de actos simbólicos. Ontem, na tomada de posse de Marcelo, os deputados do PC e do Bloco, bem como Heloísa Apolónia – que, como cada anjo segundo Tomás de Aquino, constitui uma espécie, no caso a espécie “Os Verdes” -, permaneceram sentados e não aplaudiram (parece que houve uma excepção ou outra) o discurso do novo Presidente. Alguns comentadores notaram a indelicadeza do gesto, uma indelicadeza tão mais inexplicável quanto a jornada foi toda ela marcada por aquele ecumenismo desenvolto em que Marcelo Rebelo de Sousa, para o bem e para o mal, nunca falha. Mas, se fosse só isso da indelicadeza, não teria importância nenhuma. O que o gesto significou foi uma coisa inteiramente diferente e infinitamente mais grave: a exterioridade declarada por relação ao regime. Um regime no qual, anacronicamente, ocupam agora uma posição central.
O anacronismo político do PC e do Bloco (e de muitas franjas do PS, de resto) tomou muito mais conta da sociedade do que se pensa. O episódio aparentemente insignificante (não para o próprio, bem entendido) da reacção ao livrinho de Henrique Raposo, Alentejo Prometido, mostra-o. O Henrique, como toda a gente sabe, foi insultado e ameaçado em doses cavalares nas chamadas “redes sociais” por uma multidão de trogloditas, a apresentação do livro teve de ser feita num lugar diferente do previsto, por medo do proprietário do primeiro lugar combinado, e, finalmente, na apresentação propriamente dita, foi vítima de uma sevícia vocal pelo “património imaterial da humanidade”, sob a forma do “cante alentejano”. (Para que não haja equívocos, declaro que gosto muito do “cante alentejano”, embora menos do que do canto dos pigmeus Aka, da República Centro-Africana, e até do dos pigmeus Mbuti, não me lembro de onde. É aquele particular acto vocal que me parece censurável.)
O regionalismo deve ser o penúltimo refúgio dos imbecis, mas não creio que o regionalismo explique o que se passou. Curiosamente, ninguém se perguntou se a reacção absurda e, para falar delicadamente, desproporcionada, que o livro provocou teria tido lugar há, digamos, um ano atrás. Ponho as mãos no fogo em como não. Aposto que, tirando uma polémica ou duas, tudo se teria passado muito mais civilizadamente. Se se passou o que se passou, isso deve-se em primeiro lugar à tomada de poder, no centro do espaço público, por concepções da sociedade profundamente anacrónicas, acompanhadas de uma linguagem de conflito violento e muito inimiga da liberdade.
O problema com os anacronismos de pensamento e de linguagem, quando irrompem nas conversas sobre a sociedade e as dominam, é, em virtude do seu intrínseco desajuste com os problemas próprios do tempo, turvarem de forma radical a percepção da realidade, e, por isso mesmo, restringirem o espaço da liberdade. À medida que infiltram as cabeças, cegam, e a complexidade do real desaparece debaixo de um monte de categorias de pensamento sem poder explicativo efectivo. Sobra a violência, verbal ou outra, resultante da frustração não reconhecida da incoincidência do discurso com a realidade. São tempos destes que andamos a viver, tempos de anacronismo no centro do espaço público.
Volta, Katherine, estás perdoada. Estamos mesmo a regressar à pré-história.

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