A Europa e o futuro

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.06.10

Viveremos na zona errada do mundo? É costume há décadas lamentar a crise europeia, alvitrando um futuro dominado noutras longitudes. Será que o continente se apresta a perder o comboio da história?
Na marcha da humanidade nada é garantido. Vimos grandes potentados em ruínas e culturas menores atingir a pujança. A extrapolação é o pior vício da análise histórica, como na económica, social e política, porque o futuro é incerto. É verdade que nos últimos 500 anos a Europa conseguiu uma hegemonia global espalhando a sua influência e civilização por todo o planeta, único exemplo de supremacia mundial de uma região, para mais tão pequena. Mas esse episódio já acabou, e acabou muito mal, com duas guerras europeias incendiando o globo. Hoje, quando finalmente ultrapassámos os escombros dos conflitos e os muros que deles resultaram, o mundo prepara-se para uma nova fase que ninguém ainda conhece. Terá a Europa um lugar digno, senão influente, nesse futuro?
As condições físicas deste cantinho são extraordinárias. Com um clima bastante ameno e sem os vastos desertos e selvas que atravancam outras regiões, a Europa tem, apesar disso, suficientes obstáculos geográficos para dificultar a dominação por uma única autoridade. Ao longo dos séculos muitos tentaram a unificação imperial, mas os sucessos foram sempre efémeros ou fluidos. Mesmo nos tempos romanos o controlo central era muito mais diáfano que o dos mandarins Ming, por exemplo. Isso trouxe uma abertura e flexibilidade à região, repartida entre pequenos reinos concorrentes, que gerou o seu sucesso.
Abertura e flexibilidade foram os ingredientes que propulsionaram os dois grandes domínios globais, primeiro comercial e colonial, depois industrial e técnico. A liberdade para experimentar, acertar e falhar foi a força que impeliu o progresso e a hegemonia planetária europeia. A zona que inventara a filosofia, o direito e a ciência foi a mesma que criou os dois regimes sociais de abertura e flexibilidade mais bem sucedidos da história: a democracia na política e o capitalismo na economia. Estes segredos do sucesso europeu são também as suas mais populares exportações. Outras zonas, da América à Austrália, da Índia à China e Japão adoptaram as três invenções europeias e praticam, à sua maneira, os dois regimes institucionais. Hoje nem filosofia, nem direito ou ciência, nem sequer democracia e capitalismo se podem dizer europeus.
A história da Europa, se manifesta o grande valor e eficácia destes meios, revela também a sua fragilidade. O fio de ouro da liberdade e criatividade está sempre estendido sobre dois terríveis abismos, como a história europeia manifesta claramente: a violência caótica e o totalitarismo paralisante. A recente e trágica experiência da "primavera árabe" mostra, nos nossos vizinhos próximos, a actualidade desse terrível dilema. Isso aponta para um último ingrediente indispensável a um futuro de sucesso, o mais etéreo, mas também o mais indispensável de todos.
Abertura e flexibilidade são condições importantes, como são essenciais os seus produtos, filosofia, direito e ciência. A combinação destes elementos nos dois regimes da democracia e capitalismo tem provas dadas. Estes permanecem, apesar de todos os defeitos, as alternativas menos más. Mas todos estes meios são exteriores ao ser humano. Raciocínios, regras e descobertas são determinantes para a vida, mas dentro de cada pessoa existe um universo único. A aplicação de métodos e sistemas depende de um factor essencial, interior a cada uma das pessoas concretas que os aplica. O ser humano permanece um mistério para si mesmo. O espírito que o conduz é o elemento mais decisivo do futuro pessoal e colectivo.
Aqui a Europa tem também uma situação especial, pois o continente não gerou uma grande religião. Há milénios que as mitologias autóctones desapareceram, substituídas por importações, curiosamente provenientes quase todas do mesmo canto do mundo. Dos mistérios egípcios e persas que dominaram Roma até ao judaísmo, cristianismo e islamismo, o espírito europeu veio do Médio Oriente. Este é o verdadeiro segredo do seu sucesso.
É verdade que a Europa sofreu muito em sangrentas guerras religiosas, das cruzadas à Reforma; mas foi paradoxalmente nessas épocas que o continente prosperou e dominou o mundo. Os totalitarismos que depois a asfixiaram e as revoluções e guerras que a destruíram nasceram de ideologias europeias, ateias ou deístas, que repudiaram a alma da Europa. A decisão sobre o futuro está no espírito.

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