José e os delírios de grandeza

ALBERTO GONÇALVES
DN 2015.06.14

De início, as coisas sérias. É evidente que, embora útil, a prisão preventiva traduz eventuais debilidades do sistema judicial, da lentidão a certa arbitrariedade. É provável que os seus limites temporais sejam excessivos. E é possível que constitua um recurso bastante menos excepcional do que muitos especialistas súbitos garantem (16% do total de presos). Mas nem por sombras isto desculpa que se levante um escândalo a propósito, e só a propósito, da prisão preventiva de José Sócrates, que está longe de ser o único em semelhante situação e é o último com motivos de queixa: não sei porquê, cai mal a um ex-governante que nada fez para alterar a situação considerá-la vergonhosa no exacto momento em que o atinge.
Vamos agora à parte lúdica. Desde logo, a recusa de José Sócrates em trocar a cadeia pela pulseira electrónica no recato do lar não prova a ilegalidade da detenção nem sugere inocência nenhuma. No máximo, confirma a astúcia de quem conhece os pasmados receptivos a bazófias do género. No mínimo, é o exercício de um direito e a suspeita de que as condições em Évora não serão más de todo (se calhar "a fome e o frio" a que aludiu a humanista Dra. Edite Estrela eram um exagero).
Além disso, um óbvio golpe promocional como a recusa da pulseira não exibe necessariamente as firmes "convicções" de José Sócrates, e se as exibe é abusivo confundi-las com rectidão de carácter. Olhe-se para a grande e para a pequena história, em que não faltam calamidades cometidas por gente convicta, segura de que a sua razão se sobrepõe à razão alheia. Evite-se dramatizar e evocar os vilões do costume, de Átila a Hitler: é suficiente lembrar que as justificadas críticas à confessa ausência de dúvidas em Cavaco Silva, um exemplo suave, não se devem transformar na exaltação das virtudes de José Sócrates.
José Sócrates e os respectivos asseclas estão convictos, aqui sim, da absoluta singularidade do antigo primeiro-ministro. No governo, era o próprio a classificar cada acção sua, de um espirro a uma decisão económica tipicamente desastrosa, de um "momento histórico". E depois do governo é que se sabe: na retórica em vigor, José Sócrates é caluniado, detido, encarcerado e perseguido por ser José Sócrates. A idolatria é tal que não espanta que se lamente o "circo mediático" enquanto se faz tudo para o alimentar, nem que se apele ao "regular funcionamento das instituições" enquanto se tenta sabotá-las com afinco.
O problema da adoração cega de uma relativa insignificância é a reacção oposta, leia-se o ódio desmesurado que a insignificância também suscita. Se uns nunca acreditarão numa justiça que condene José Sócrates, outros nunca aceitarão uma justiça que o absolva. O que é péssimo para a justiça, mau para José Sócrates e assim-assim para o país, já habituado a escapar por pouco aos delírios de grandeza do indivíduo.

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