É a vida

JOÃO TABORDA DA GAMA
DN 2015.06.18

Na semana passada li um dos mais fortes textos que já li. Chama-se "Morrer é mais difícil do que parece", escrito pelo Paulo Varela Gomes, e está na Granta n.º 5, nas bancas (e na internet, mas dizem que não se pode dizer).
Na semana passada veio a Lisboa Philippe Petit, um dos homens mais fortes que já vi. O maior funambulista de todos os tempos esteve na Feira do Livro, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Petit atravessou as Torres Gémeas em 1974, num arame de um lado ao outro, e vice-versa, durante quarenta minutos. O melhor texto sobre Petit, "Petit, o grande", foi escrito por um português, que é o António Araújo, e está na Revista XXI, nas bancas.
Paulo Varela Gomes conta como está a morrer de cancro, conta como pensou em matar-se, conta como se estava mesmo a matar e como não se matou. Não sei se conta como, se conta porquê. Diz "Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava, dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás (...)".
É um texto de encontro radical com Deus, de conversão. É um exemplo concreto, forte, cru do exercício consciente da escolha que sempre temos, a maior escolha que temos, a única, que é a escolha de continuarmos vivos. Por isso, a história não é uma história, é uma notícia, a notícia de uma vitória sobre a morte. Escolher a vida e ir à luta com ela exige coragem de morte, mas nem sempre em mesmas doses. No meu caso, a escrever este texto num hotel de luxo, no Porto, rodeado de um grupo de turistas americanas de peles hidratadas e calções desidratados, que me perguntam onde é a "ribêra del Duero", exige quase nada de coragem, ou apenas uma coragem de outro rosário. Coragem, muitíssima coragem, se pede a quem um cancro devora. Mas é o exercício no extremo dessa coragem que destapa a vida: aquilo que leio naquele texto é que foi a sombra da morte que deixou entrar a luz da vida.
E uma coisa destas, um texto destes, é um murro. Não, como já ouvi, um murro na esquerda ateia ou agnóstica que não gostará de ver um dos seus maiores intelectuais falar de Deus, citar o Evangelho. Não. O murro é, em cheio, nos católicos, como eu, que falam mais do Jesus Jorge, do que do Jesus Cristo, que sabem mais de Matisse do que de Mateus. É um murro naqueles católicos, como eu, que tantas vezes já juraram a si e a outros, e fizeram que outros lhes jurassem a si, que quando a coisa vier, que vai ser rápida.
Havia uma coisa que queria perguntar a Philippe Petit: saber se há vida depois de se atravessar as Torres Gémeas em cima de um arame, e que vida é essa. Claramente não gostou da pergunta, disse que sim, que há vida, que nunca se orientou por recordes, que cada desafio é um desafio. Isso. Alguém planeia anos a fio atravessar as Torres, mesmo antes de elas estarem construídas, atravessa--as e não gosta de recordes. Petit fez algo que nunca ninguém tinha feito, nem fará. O documentário Man on Wire (James Marsh, 2008) retrata bem a loucura, o risco, o facto de não termos todos sido criados iguais.
A ironia da semana passada foi ter percebido que a grandiosidade de um ato que nunca mais ninguém repetirá não está ao alcance de todos precisamente porque pode esvaziar-nos a vida para sempre; mas decidirmos não morrer é uma escolha que nos é dada a toda hora precisamente porque nos pode dar a vida para sempre. É tramado. Mas é a vida.

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