A pólvora e a faúlha

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2011-08-08

Os terríveis crimes de Anders Behring Breivik a 22 de Julho na pacata Noruega chocaram o mundo. A bomba em Oslo e os disparos indiscriminados no acampamento de juventude ficarão marcados na horrorosa história do terrorismo.
A explicação comum é que Breivik é psicopata de extrema-direita, e a solução é pedir ao Estado medidas de segurança. Essa análise cómoda passa ao lado dos elementos mais inquietantes. Se ele é doido, isso evita exames mais atentos. Por outro lado, como pode a sociedade proteger-se de actos tresloucados que, por definição, são imprevisíveis? A questão é mais profunda e por isso mais perturbadora.
A mentalidade actual, alimentada por múltiplos filmes e enredos, sabe que no mundo existem os bons e os maus. Breivik é um dos maus, e nós e as suas vítimas somos bons. Na verdade, os bons e os maus lutam dentro de cada um de nós. Todos têm sempre excelentes intenções e ninguém procura o mal. Foram belas visões grandiosas que motivaram os horrores de Robespierre, Hitler, Estaline, Mao e Pol Pot, como agora de Breivik. Aliás, quanto maior o ideal, mais mesquinhas parecem as vidas que se sacrificam em seu nome.
Não existem dúvidas de que o jovem de 32 anos é alienado. Mas a sua demência não está no seu diagnóstico da actualidade. A cada passo na Internet, conversas ou artigos de jornal ouvem-se alarmes, medos e acusações semelhantes às dele. Os actos do norueguês são insólitos, mas a sua retórica é comum. Não é preciso ser clinicamente louco ou ideologicamente nazi para se dizer que a sociedade está perdida, que bandidos infames roubam e corrompem o sistema e a nossa vida e felicidade estão gravemente ameaçadas. Os acusados variam muito, dos banqueiros aos muçulmanos, passando por jornalistas, multinacionais, comunistas, corruptos, nazis, maçons, judeus, americanos e outros ódios de estimação.
Vivemos um período de intensa crítica e revolta. A crise assustou as pessoas e motiva a busca de culpados. Há muita gente apavorada e cada vez mais indignados, irritados, enfurecidos até. Climas destes geram efeitos assim. Claro que ninguém que diga frases incendiárias numa entrevista ou blog pode ser responsável por chacinas de desvairados. Mas loucos sempre os houve e haverá. Quem espalha a pólvora tem mais culpa que a faúlha de ocasião. Como nas primeiras décadas do século XX, estamos a criar um ambiente fértil em desequilíbrios e extremismos.
O verdadeiro problema não vem da situação, mas da forma como a olhamos. O mundo, cheio de perigos e sofrimentos, tem também ganhos espantosos e belas possibilidades. A globalização, a crise, até o memorando da troika podem ser vistos como terrível injustiça que exige castigo ou excelente oportunidade que nos abrirá um futuro melhor. A escolha de omitir o bem e mergulhar na dor e na raiva é nossa. Dessa atitude, que hoje tantos partilham, uma pequena minoria tirará actos dementes. Com o grau de raiva que se sente por aí, fica-se na dúvida se a raridade dos ataques se deve a sanidade ou cobardia...
Depois vem a forma de aplicar essa ideologia, pois não há só um problema de convicção, mas de justiça. Qualquer análise séria da situação tem de identificar males graves e culpados merecendo castigo exemplar. Mas, certos da nossa certeza, temos de respeitar os que pensam de forma diferente. Não só temos de ver o que há de bom nos males que repudiamos mas também a razão que têm aqueles que se nos opõem. A loucura de Breivik está menos no seu banal diagnóstico tremendista que na falta de respeito pela vida das pessoas concretas que tem diante de si. Neste caso, eram jovens inocentes. Se fossem ministros corruptos, mafiosos, fundamentalistas, banqueiros ou especialistas em rating, mereceriam o mesmo respeito. Aquele respeito que também falta nas nossas fúrias contra o patrão, cônjuge ou colega. Vivemos tempos difíceis em que não basta ser democrata e sensato. Para resistir ao mal é preciso erigir heroicamente a justiça e a dignidade humana como valores sagrados. Os grandes ideais só são precisos nos tempos difíceis.

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