Fazer política
DN 2011-08-17
CARLOS ABREU AMORIM
O último livro de Tony Judt, entre nós nomeado como Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, é uma análise "à esquerda" sobre algumas das encruzilhadas fomentadas pela degeneração do Estado social (em azedo estado de negação, portanto) e possui o condão de comprovar que o seu autor é muito melhor a historiar as agruras do nosso tempo do que a pensá-lo.
Contudo, Judt faz uma interrogação essencial, em que me revejo, acerca da compulsividade actual de "limitar as considerações de política pública a um mero cálculo económico", reduzindo a lógica de apoio "a questões de lucros ou perdas". Salvaguardando as devidas distâncias com o caso português, cuja tradição tem sido a alegre dissipação de fundos públicos, não restam dúvidas de que hoje se abandonou a premissa básica que ensina que todas as decisões económicas dos poderes públicos são políticas e, como tal, deverão ser tratadas e exteriorizadas.
Bem sei que cada ciclo político, por impulso natural de afirmação, tende a contrastar com o antecedente - logo, como o período socialista fez gáudio em "marketizar" até à exaustão qualquer indício de medida, é compreensível, até certo ponto, que estes primeiros 50 dias do Governo Passos Coelho tenham revelado uma obsessão por alcançar condições financeiras que viabilizem a economia cuidando menos da mensagem política.
Só que, independentemente da gravidade da crise e da bondade das decisões técnicas para a debelar, nenhum programa financeiro ou económico resultará caso desampare a sua indelével natureza política.
Fazer política não é anunciar roteiros de medidas tecnicamente correctas e precipitá-las verticalmente sobre as pessoas que ainda estão longe de interiorizar a sua indispensabilidade.
Fazer política não é dissertar em tom esotérico e no linguajar hermético do "economês" sobre matérias que fustigam drasticamente o dia-a-dia dos cidadãos.
A política não é nem nunca foi uma ciência feita de escolhas racionais e exactas. Fazer política é, também, a arte de governar em todas as dimensões técnicas, personificando as preocupações comuns e expressando as decisões de modo persuasivo, visando aglutinar as vontades em prol dos sacrifícios necessários.
Fazer política, sobretudo, não é ferir as expectativas mais decentes dos muitos que confiaram que este Governo não iria prolongar a "mesmice" que matizou os anteriores. Nem todos terão consciência plena do capital político que está a ser posto em risco pelo simples facto de se ter dado prioridade às medidas que actuam do lado da receita, retardando um pouco mais as decisões efectivas e perceptíveis da redução permanente da despesa pública. Injusto ou não, é difícil refrear a analogia com aquilo que outros juraram e nunca fizeram - o que uma singela leitura (política) do conto popular russo Pedro e o Lobo deveria ter evitado.
Este Governo está a tomar as medidas obrigatórias. No entanto, deve dedicar os próximos 50 dias ao primado da política para não perder o coração das pessoas - caso contrário, não há saúde financeira que lhe possa valer. Fazer política é nunca esquecer estas verdades simples.
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