O poder de Jon Stewart

DN 2011-08-22
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Os nossos antepassados ensinavam que "não se brinca com coisas sérias". Esta sentença, crescentemente criticada nas últimas gerações, tem violação evidente na extraordinária carreira de Jon Stewart. Aos 48 anos, ele é uma das personalidades mais poderosas da poderosa indústria mediática americana. Quatro vezes por semana (de segunda a quinta), às 11 da noite (hora oriental) e durante 22 minutos, o Daily Show with Jon Stewart da Comedy Central é desde 11 de Janeiro de 1999 um dos grandes êxitos televisivos. Visto em directo no cabo por quase 1,6 milhões de pessoas, depois retransmitido em vários canais (em Portugal, na SIC Notícias) e na Internet, já ganhou 14 Emmys, entre outros prémios.
Quem é Jon Stewart? Não é um jornalista, porque o seu propósito declarado é fazer rir num programa de comédia sobre a actualidade do momento, genialmente concebido e executado. Mas ele também não é um comediante, tratando de assuntos sérios e candentes com opinião clara e contundente, marcando a visão de um número crescente de espectadores, sobretudo jovens. Só isso explica que entre os seus convidados tenham estado o Presidente americano Barack Obama (27/Out./2010), o vice-presidente Joe Biden (17/Nov./2009), o Presidente da Bolívia Evo Morales (25/Set./2007) e enorme quantidade de ex-poderosos, como Jimmy Carter, Bill Clinton, Tony Blair, Gordon Brown, Pervez Musharraf e Vicente Fox, além de parlamentares, intelectuais, individualidades e todos os candidatos à presidência americana.
Será que afinal se deve brincar com coisas sérias? Sem esquecer as sonoras gargalhadas e os momentos de séria reflexão que tem gerado em tanta gente, e sem tirar nada à sua qualidade intelectual e mediática, deve-se considerar o perigo da atitude. Quem influencia a realidade só para brincar e divertir-se acaba sendo perverso.
É preciso eliminar um mal-entendido. Podem tratar-se coisas sérias fingindo brincar. Ao longo dos séculos, a sátira foi uma saudável influência na política, com Aristófanes, Diógenes, Horácio, Juvenal, Molière, Swift, Voltaire ou George Orwell; os bobos da corte eram decisivos na denúncia do mal através do riso. Mas não se pode confundir isto com o Daily Show, porque o propósito é precisamente o oposto. Os filósofos satíricos queriam fazer política através da comédia; Jon Stewart faz comédia com a política. Repetidamente, o autor tem referido que pretende apenas uma boa gargalhada e negado qualquer influência na opinião pública. Ele dirá aquilo que tiver mais graça, independentemente do resultado. Como por cá com os Homens da Luta ou o Gato Fedorento, não existe propósito social por detrás. É mesmo só rir.
O problema é relevante, porque na sociedade mediática a maior parte da informação que recebemos trata de assuntos que não nos afectam, directa ou indirectamente. Dizemos querer estar informados, não por necessidade mas por divertimento. As atribulações de Passos Coelho ou Obama são tão excitantes quanto o casamento de príncipes ou as tropelias da estrela do momento. Aliás, sendo histórias baseadas em factos reais, ganham picante adicional de interesse. A razão da nossa procura de informação é lúdica.
Assistimos hoje a uma crescente interpenetração de ficção e realismo. Enquanto o cinema torna vívidos mundos fantásticos, do Harry Potter a Avatar, as notícias têm de ser mais apaixonantes que rigorosas. Isso, que é há muito visível nos tablóides, sente-se cada vez mais nos telejornais; mas também na divulgação pseudocientífica de canais como National Geographic e sobretudo nos reality shows, onde a própria ficção finge ser verdadeira.
Jon Stewart não representa, assim, um exemplo insólito e aberrante. Ele constitui apenas um extremo no vasto espectro de alternativas mediáticas. Só que essas modalidades muitas vezes misturam-se e o Daily Show passa por imprensa séria.
O riso pode ter um enorme poder destrutivo, como sabe bem quem seja atingido pela galhofa. Uma piada mal dirigida estraga mais do que um murro. Por isso é tão perigoso brincar com coisas sérias.

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