Recomeços

Miguel Esteves Cardoso
Público, 2011-03-25

Por um acaso, anteontem, no maravilhosamente reinventado restaurante Aya, em Carnaxide, só encontrámos pessoas amigas que tinham sofrido e aguentado doenças que muitas vezes matam.
Falámos todos de cancros e de a-vê-cês e de infecções, como se os anos em que não nos vimos tivessem sido ocupados - como, de facto foram - a tentar não morrer. Sentiu-se uma sorte de ainda estarmos todos aqui, mais a tristeza, insolúvel, de quem já não estava. Alguém falou em sobreviver e logo todos nos zangámos com a palavra. Sermos meramente sobreviventes resumia as nossas novas vidas ao facto de ainda não termos morrido.
Também não renascemos. Nem tão-pouco nos limitámos a continuar, lidando com a doença como uma interrupção da vida, que retomámos um bocadinho mais à frente.
Na verdade, tivemos de nos refazer. Revimo-nos e recentrámo-nos. Fomos obrigados a rearrumar as nossas almas, para acomodar ameaças novas, arranjando e preparando as identidades, habituando-nos a elas.
Somos mais recomeçadores do que sobreviventes. Aquilo que conseguimos fazer foi mais um começo do que uma continuação. A sobrevivência não tem valor, assim como quem morre não tem culpa.
Somos obrigados a viver como somos obrigados a morrer. Recomeçar não era a nossa vontade - estávamos bem como estávamos antes de adoecer e de nos curarmos. Mas é aquilo que temos de fazer, já que temos a sorte de continuarmos, por enquanto, por muito (ou pouco) que seja o tempo, vivos. E recomendados.

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