Lamentável é a ingratidão

Público 2011-03-17 Pedro Lomba

A guerra colonial começou há 50 anos. Não é do meu tempo. Só não tem o significado da guerra do Peloponeso, porque, digamos, foi uma guerra que envolveu Portugal, e Portugal sempre é o país onde nascemos. É difícil falar dela sem ceder às brigadas do politicamente correcto. Não foi o caso do Presidente da República, que, numa cerimónia de homenagem aos antigos combatentes, invocou o exemplo da "coragem" e do "desprendimento com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar".

Isto, que em qualquer democracia digna não mereceria mais do que uma nota de pé de página, no nosso Portugalinho ainda não se pode dizer. O policiamento a que somos invariavelmente sujeitos deprime. A terreiro tinha logo de vir o Danton do burgo, Francisco Louçã, criticar Cavaco por "reescrever a História" e "distinguir a intervenção militar". E acrescentou a seguir o líder do Bloco de Esquerda: "Cavaco Silva está em guerra com o passado. Só assim se compreende comparar as "Forças Armadas de hoje com as da ditadura e do colonialismo."

Nunca me ocorreu fazer o mais leve reparo sobre aqueles que, tendo sido forçados pelo regime a combater uma guerra de que discordavam frontalmente, resolveram desertar, fugir ou exilar-se. (Recordo que essa infâmia foi arremessada contra Manuel Alegre nas últimas presidenciais.) Não é só por falta de legitimidade histórica ou política. Por uma questão básica de respeito: eles tinham convicções e se há exercício que testa genuinamente a consciência liberal de uma pessoa é esse. Nenhum Estado, nem mesmo numa democracia quanto mais numa ditadura, pode dispor em absoluto das convicções de consciência de uma pessoa. E não preciso dizer que muitos são credores do nosso agradecimento: lutaram por uma democracia que, apesar de ter chegado a este estado doentio, será sempre superior às alternativas.

Pelas mesmas razões, tenhamos a coragem de "vestir a pele" dos muitos portugueses nascidos na década de 30-40 que tomaram a decisão precisamente contrária. Melhor, que não tomaram qualquer decisão, porque encararam a participação na guerra como um facto inevitável. Foram muitos. Entenderam que o seu dever era estar ali. Fizeram-no pagando um preço pessoal elevado. Para a maioria, presumo, não era Salazar nem Caetano. Eram eles próprios, era o sentido do dever, da dignidade e da sobrevivência. Muitos eram milicianos, não eram bem-nascidos nas burguesias de Lisboa como o próprio Louçã e outros, não tinham tempo para pensar em política. E o que tem Louçã para dizer a esses portugueses: que estavam enganados, que todo aquele empenho, coragem e honra não merecem nenhum respeito, reverência ou admiração. Que eles não são, nem podem ser exemplo para ninguém. É isto que a cabeça totalitária de Francisco Louçã tem para lhes dizer.

Pois, como outros dizem, não apaguem a memória. Os antigos combatente são mesmo um exemplo. E isto, repito, não é reescrever a História. A História está escrita. Tem sido escrita. Não pode é ser a História contada pelos que dela se apropriaram.

Se Louçã percebesse, já não digo valorizasse, um mínimo da ética militar, um mínimo da continuidade de valores que deve animar um país, não diria que existiam umas Forças Armadas da "ditadura e do colonialismo" e outras da democracia. Existia um regime da ditadura, tal como existe outro regime da democracia. Sim, não são iguais. Mas o dever militar, que, entre outras coisas, requer obediência e prontidão, esse tem de ser o mesmo. A culpa e a responsabilidade pertencem aos políticos. Os portugueses impreparados que irresponsavelmente partiram para a Flandres em 1918 sabiam disso.

Louçã e companhia, na sua falta de gratidão e respeito pelo passado, gostariam de esconder os antigos combatentes, fechá-los num armário para que eles não apareçam, porque são a memória de um tempo iníquo. E dizem-se eles democratas e liberais. Não vejo onde. Jurista

Comentários

joaquim disse…
Parabéns ao Pedro Lomba por este lúcido texto!

Um abraço de um combatente da Guiné.
Anónimo disse…
O Dia dos Combatentes do Ultramar

Como antigo alferes miliciano em Angola, não podia deixar de estar hoje junto do Monumento aos Combatentes do Ultramar a celebrar o Dia de Portugal e o sacrifício de uma geração que, com raríssimas excepções, se não furtou a um combate não desejado mas corajosamente aceite, em nome de um Portugal livre, soberano, capaz de sobreviver na sua diversidade étnica e cultural.
Começo por referir que não éramos "algumas centenas", mas sim três ou quatro milhares de antigos combatentes.
E refiro ainda que éramos brancos e negros, cristãos e muçulmanos, à imagem do Portugal que alguns destruíram em 1975.

É de assinalar que, caso único em Portugal, a cerimónia incluiu orações de um sacerdote católico e de um imã muçulmano, para reforçar a nossa total adesão a essa pluriculturalidade portuguesa.
Só nós, combatentes, neste Portugal pseudo-democrático, nos atrevemos a tratar em pé de igualdade, numa cerimónia patriótica, cristãos e muçulmanos.
Só nós sabemos que ser português não é sinónimo de ser branco, cristão ou europeu, e só nós o afirmamos, por actos, de forma bem visivel.

Manifestámo-nos ainda por um Portugal que não seja uma quinta de uma classe política corrupta e imoral, que nos quer vender a projectos estranhos, para que a oligarquia que servem possa prosperar, mesmo à custa da nossa liberdade, da nossa soberania e da nossa identidade.

Enquanto formos vivos continuaremos a reclamar um Portugal português, não nos conformando com o estatuto de terceira classe que nos querem impor numa Europa que nos despreza.

Um Portugal que tenha a suas raízes no projecto multissecular de união com os povos de África, Ásia e América do Sul que foram durante séculos nossos compatriotas e continuam a ser nossos irmãos.
Numa aliança de povos iguais na dignidade e na soberania, queremos voltar ao sonho da lusofonia, para que nós e os nossos descendentes possam continuar a ser portugueses.

ALBATROZ
Anónimo disse…
Terça-Feira passada foi o dia do cinquentenário do tristemente famoso 15 de Março.
O acto de extermínio de brancos, pretos e mulatos, levado a cabo pela UPA dirigida por Holden Roberto.
A nossa Imprensa e todos os outros MCS, olvidaram completamente esta data.
Anónimo disse…
Há cinco anos deparei com esta significativa narração. Por achar que era valiosa,guardei-a.
Hoje mostra ter uma grande actalidade. E transcrevo-a abaixo.

«Sou refugiado de Angola, então com 12 anos. Hoje tento 57, farei 58 em Outubro. Na época até cheguei a ir á casa mortuária de Luanda, reconhecer corpos esquartejados, veja-se a convite das senhoras da Cruz Vermelha.
No dia 15 de Março de 1961, a fazenda do meu pai em Nambuangongo, foi barbaramente massacrada e nessa data o meu irmão mais velho, então com 19 anos de idade, foi esquartejado á catanada, pelos guerrilheiros da UPA(FNLA), não obstante ser paralítico dos membros inferiores. Nessa data, milhares de outras pessoas foram igualmente massacradas, em tantas outras fazendas do norte de ANGOLA.
Entre 1970 e 1972, fui militar na Guiné, como furriel miliciano, integrado numa força de intervenção em que 80% dos militares, entre feridos e mortos, sofreram igualmente na carne, os horrores da guerra.
Constato que quando se fala nestas coisas, nós somos os opressores, somos os facínoras, somos os verdadeiros vândalos e que as Forças Armadas Portuguesas, só agora que faz missões em Timor e na Europa é que são verdadeiramente umas Forças Armadas honradas.
Nos 2 anos que estive na Guiné, não me lembro de qualquer episódio do qual me possa envergonhar, conforme se quer fazer crer até em Telenovelas. Pelos vistos a nossa tropa só fez massacres e os movimentos de libertação, só praticaram boas acções!...
Pergunto porque é que a imprensa portuguesa ignora o 15 de Março de 1961. Faz amanha 45 anos.
Com muita mágoa.

Jorge Fontinha»
Anónimo disse…
Tambem eu agradeço este artigo ao Pedro Lomba. Neste país que nunca mais se endireitou depois da passagem das tropas napoleónicas, há uma história a honrar. O império marítimo que foi Portugal entre o século XV e 1815 foi uma realidade que custou a vida e o esforço de muitas gerações. Pelo menos, ´quanto a história e inteligência , o nosso ditador deu provas válidas muitas vezes. A previsão que Franco Nogueira apresenta para o futuro de Portugal, uma vez perdidas as colónias não podia ter sido mais certeira ( As crises e os homens, 1961). A luta por terras que eram portuguesas há 5 séculos era legítima e está por escrever com clareza o desastre que constitui para África a saída dos europeus. Mas esses portugueses que sa´ram do comodismo do cantinho atlãntico para lutar por uma vida melhor abaixo do Equador não são nada apreciados pela burguesia com a cultura de café cá da terrinha. A vastidão do oceano, o espaço a perder de vista que deu novos horizontes ao mundo não impressiona o espectador de tv no sofá. É curioso confirmar o provincianismo desta visão. Quem viajou pelo mundo sabe como é impressionante a herança cultural que Portugal deixou em Goa, em moçambique, em Angola. Mas os manuais de história da terra encarregaram-se de apenas ensinar a crise de 1383-1385 e saltar para a industrialização e o movimento socialista. Nomes como Paulo Dias de Novais, Salvador Corrêa de Sá...foram devidamente apagados dos livros de história- É pena pois a categoria destes portugueses por cuja memória combateram com honra os nossos jovens até 75 é infinitamente superior à dos iluminados comodistas que nunca se calam para dizer mais uma bestialidade ou banalidade. Coragem não faz parte do carácter destes senhores que enchem a boca com a palavra democracia sem reparar que as estruturas do regime estão podres.

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