Vários níveis de tragédia

Maria João Marques
Observador 15/6/2016

Subimos mais um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. O que significa que subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo

Além da bipolaridade autoinduzida a que os portugueses se entregam a cada europeu ou mundial de futebol, estávamos também entretidos com o presidente e o primeiro-ministro em Paris, sem nos conseguirmos decidir se havíamos de rir, se corar de vergonha pelas figuras alheias. Os indicadores económicos do país são de índole a bebermos para esquecer. Mas não faz mal, que pm e PR passeiam-se sorridentes por Paris, tiram selfies ridículas e alardeiam os benefícios dos afetos e do otimismo. Quando alguém perder o emprego, já sabe que pode contar com algo ainda mais útil: a amizade do presidente.
Tivemos ainda o bónus de Costa sugerir aos professores portugueses que desandem para França se quiserem continuar carreira no ensino, lembrando que o número de alunos tem diminuído. O que é delicioso. Por um lado, porque a esquerda enlouqueceu quando Passos Coelho disse exatamente a mesma coisa. Por outro, porque a mesma esquerda agora se esforça por negar que a mensagem de Costa é igual à de PPC. Nem o primeiro-ministro resistiu a vir presentear-nos com metáforas elegantes da beira da estrada e a estrada da Beira.
Enfim, estávamos nós entregue ao reality show Costa & Marcelo quando ocorre o atentado de Orlando. E impressionou-me particularmente desta vez a tremenda propensão que tantas pessoas têm para catalogar um evento complexo e arrumá-lo numa caixinha pequenina onde fica reduzido a ocorrência monotemática.
O criminoso que matou em Orlando era muçulmano, avisou que fazia o atentado em nome do ISIS, declarou as imbecilidades do costume (estava tão incomodado com as mortes de inocentes provocadas pelo Ocidente no Iraque e na Síria que ia matar mais gente inocente como protesto), vários relatos colocam-no como simpatizante do extremismo islâmico, já tinha ido duas vezes à Arábia Saudita (esse país encantador e moderado). Mas não, o atentado de Orlando não é terrorismo islâmico, onde é que eu fui buscar esta ideia?
Só por acaso aquela criatura que matou gente em Orlando era muçulmano. Tal como só por acaso os atiradores do Charlie Hebdo e do supermercado judaico eram muçulmanos. Ou o casal que matou uma dúzia e picos em San Bernardino. Ou os terroristas do Bataclan. Ou mais outras dezenas de exemplos. Tudo acasos curiosos. Improbabilidades estatísticas a ocorrerem inexplicavelmente. De resto, tenho a certeza que todos comentaram com alguém ‘já sabe que houve um atentado terrorista islâmico em Orlando?’ e receberam de resposta ‘Terrorismo islâmico? A sério? Não estava nada à espera.’
Já era frequente ouvirmos a tontice ‘o islão não tem nada a ver com terrorismo’. Tem. Os muçulmanos não são psicopatas, evidentemente, e a maioria é pacífica. Mas a religião é belicosa e inaceitavelmente bárbara para os padrões civilizados europeus. Agora subimos um patamar de tontice: os atentados terroristas islâmicos já não são atentados terroristas islâmicos. Como combater um problema costuma começar pela identificação do problema, subimos também um degrau na ineficácia da contenção do terrorismo.
A criatura de Orlando – que podia ele próprio ser gay – atacou um bar LGBT. Ora este facto leva a dois tipos de reações. Uns dizem que afinal foi só um ataque homofóbico. O primeiro-ministro Costa, num deplorável tuite – que parecia tirado de um livro de autoajuda para pessoas com QI abaixo de 95 – já veio culpar a ‘homofobia’ pelo atentado. Uma alma da Isquierda Unida de Espanha concluiu que as mortes eram resultantes do ‘heteropatriarcado’. Viram? Afinal era só ódio a gays, nada de terrorismo islâmico. Aquelas tiradas sobre o ISIS foram um momento de humor, daquele afiado e seco, do criminoso antes de matar gente.
Se algum dia um muçulmano, declarando fidelidade a uma qualquer organização terrorista, entrar numa conferência de feministas e matar mulheres, vai ser só um ataque machista – ponto. O extremismo islâmico nem costuma acumular com ódio à igualdade dos sexos. Já a ocupação de uma escola em Beslan, por terroristas tchetchenos, também não teve nada de terrorismo islâmico. Segundo a lógica, foi contra as crianças. Vai-se a ver e era só algum jovem pai revoltado por ter de mudar as fraldas ao seu filho recém-nascido a meio da noite.
Outros recusam que o ataque a um bar LGBT tenha sido um ataque homofóbico. Como se espantasse alguém que o radicalismo islâmico (e o islão moderado, já agora) contenha homofobia. Como se o repúdio pelas liberdades sexuais do Ocidente – sobretudo das mulheres e dos homossexuais – não fosse uma pedra basilar do fundamentalismo muçulmano. Como se não pudesse ser simultaneamente homofobia e terrorismo islâmico. Os mortos de Orlando foram escolhidos por serem gays, não por serem uns americanos ao calhas. Este ataque homofóbico reforça a índole antiocidental do terror islâmico, não a anula.
Mas há espíritos que não aceitam que uma realidade possa ser complexa e multifacetada. Nem um atentado terrorista. Se formos então para manifestações mais insidiosas, como um mayor de Londres muçulmano a proibir anúncios nos transportes públicos com mulheres despidas, prevemos que vários cérebros curto-circuitem. De facto, cada vez mais as rígidas imposições islâmicas às indumentárias femininas se aproximam do puritanismo da esquerda progressista que clama contra a objetivação das mulheres.
Bom, nisto de islão celebremos uma pequena redenção desta semana: os clérigos do Paquistão decretaram que os assassínios ditos de honra (de mulheres, claro) são anti-islâmicos. Está, assim, desfeita a magna dúvida sobre a bondade de regar de gasolina e a seguir incendiar uma mulher que casou com quem a família não aprovou.

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