O culto satânico que não existia

Alexandre Homem Cristo
Ionline 2013-08-19
Nenhum jornal, por mais prestigiado que seja, está imune ao sensacionalismo (mau jornalismo)
Existem muitas formas de contar uma mesma notícia e, evidentemente, umas são mais rigorosas do que outras. Geralmente, na imprensa escrita, o debate sobre o tema foca-se na análise da neutralidade dos jornalistas nas peças políticas e nas peças sobre sociedade (onde o sensacionalismo pode significar mais leitores). Interessemo-nos apenas pela questão do sensacionalismo e, para fins de demonstração, recuperemos uma notícia que fez manchete em vários jornais portugueses.
No dia 1 de Julho, Ricardo Carvalho, de 34 anos, foi encontrado decapitado junto à linha do comboio em Penalva (Palmela). Uma vez identificado, a GNR dirigiu-se à morada dos pais para os informar, apenas para se aperceber de que ambos haviam sido assassinados, no dia anterior, pelo filho que se suicidara. Apesar de ser um homem pacato e solitário, os vizinhos sabiam que havia sido internado várias vezes com problemas psiquiátricos e que estava medicado. De resto, havia relatos de que Ricardo Carvalho, vivendo na total dependência dos pais, tinha comportamentos violentos quando estes lhe negavam dinheiro, o que, tudo indica, estará relacionado com o crime.
Esta seria uma simples, embora trágica, história de homicídio-suicídio, não fosse Ricardo Carvalho vestir-se de negro e ouvir heavy metal, facto que entusiasmou os jornalistas. Assim, no "Correio da Manhã" (CM) (02.07.2013), Ricardo Carvalho foi descrito como um "gótico desempregado", que vestia "roupa preta e correntes", o que "metia medo a algumas pessoas". No "Jornal de Notícias" (JN) (02.07.2013), o título da notícia foi "Diabo mata os pais e suicida-se", tirando proveito do relato de uma vizinha idosa que, certo dia, ouviu o homicida dizer que era o Diabo. E o "Diário de Notícias" (DN) (02.07.2013), na capa, escreveu "Homem ligado a culto mata pais e suicida-se". Na notícia (p. 21), de título "Gótico satânico mutilou os pais até à morte e suicidou-se", descobre-se que o homicida estava "isolado do mundo" e "gostava de filmes de terror" e "dos géneros musicais black e doom metal" (informação que a jornalista retirou do facebook do homem). A história é, por fim, relacionada, pela jornalista, com outro caso, ocorrido em 1999 e na altura associado ao satanismo, em que o homicida tinha uma banda de heavy metal.
Assim, como fica claro na comparação, a mesma história originou três notícias com diferenças assinaláveis. No CM faz-se uma descrição do homicida. No JN introduz-se um título sonante e sensacionalista, baseado num testemunho. E no DN opta-se por associar o crime a um culto satânico (a notícia não explica que culto, nem qual a origem dessa informação), para depois estabelecer elos de ligação com um caso antigo.
Este exercício comparativo é particularmente útil por duas razões. Primeiro, porque contraria as expectativas da maioria dos leitores, que (justa ou injustamente) esperam mais sensacionalismo do CM e mais rigor do DN - e aqui têm precisamente o inverso, porque o DN inventou um culto satânico. Segundo, porque, por isso, nos relembra que nenhum jornal, por mais prestigiado que seja, está imune ao sensacionalismo (mau jornalismo).
Sem extrapolar este caso e concluir sobre a qualidade do jornalismo nestes diários, parece evidente que uma reflexão seria oportuna. E por certo seria também uma opção muito mais séria e eficaz para a defesa do jornalismo do que ameaçar preventivamente jornalistas, através de um aviso solene publicado, como fez recentemente o provedor do leitor do DN.

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