Igreja portuguesa e esfera pública: assuntos terrenos

Público, 06/08/2013

A ideia de espalhar pelas dioceses mais marcantes bispos com capacidade de intervir na esfera pública é especialmente avisada
1. De há muito que queria escrever sobre a intervenção da Igreja Católica portuguesa na esfera pública. E até, mais do que sobre a intervenção, sobre o modo como ela se organiza para propiciar essa intervenção. Sempre me retraí de o fazer, porque, embora me assuma como um "cristão de cultura católica", são muitas as questões - especialmente da ordem da moral pessoal e familiar ou da ordem da disciplina - em que não me revejo na doutrina ou nas posições "oficiais" ou "ortodoxas" da Igreja Católica. E essas divergências (que, em alguns casos, são dúvidas) acabam por ser uma fonte de constrangimento ou de inibição para falar sobre outros temas a "plenos pulmões" - temas justamente próprios de quem está, como se diria em linguagem eclesial, em comunhão plena ou absoluta.
Note-se que, em parte, esse anseio de escrever sobre as relações com a esfera pública (no sentido habermasiano do termo) se destina a defender o pleno direito da Igreja Católica se exprimir e fazer valer as suas posições na praça pública. Diga-se de passagem e paradoxalmente que muitas dessas posições pertencem precisamente ao núcleo de questões que me faz divergir, tergiversar ou hesitar. Mas uma sociedade livre tem de estar aberta à participação das religiões no espaço público, não podendo remetê-las para aquilo a que aqui, com propriedade, se chamaria a esfera privada. Ora, em Portugal, uma velha tradição jacobina e laicista criou enormes resistências a uma participação de corpo inteiro e "descomplexada" da Igreja no debate público. De cada vez que um bispo, um sacerdote ou até um leigo mais comprometido procura expressar a sua posição, logo é levantado o aguilhão da interferência e o dogma da separação da Igreja e do Estado. Numa sociedade aberta e neutral, laica, mas não laicista, a Igreja e os seus membros gozam de completa liberdade de expressão e de difusão das suas posições, concordemos ou não com elas, gostemos ou não delas, adiramos ou não a elas. Eis algo que uma sociedade democraticamente madura deveria já há longo tempo ter assimilado. E digo sociedade, porque não penso apenas no Estado, mas na esfera pública como um todo e até na própria Igreja, a qual, por vezes, parece ter interiorizado uma capitis diminutio ou ter receio da sua própria sombra.
2. Veio tudo isto a propósito, recordo, do modo como a Igreja portuguesa organiza a sua intervenção no espaço público. Por muito que se confie nos desígnios divinos, a história mostra bem que a difusão do cristianismo e dos seus valores também se deve a escolhas estratégicas racionais.
Talvez porque o cristianismo, enquanto religião, se fundamenta na adesão a uma pessoa (Jesus Cristo) e não a uma doutrina, o papel dos modelos e das referências pessoais foi sempre decisivo na construção da sua base organizatória, a Igreja. Numa sociedade mediática, plural e multicultural, o papel dessas referências ou modelos é porventura mais relevante ainda. A julgar pela sua actuação e magistério, os papas João Paulo II e Francisco parecem ter compreendido isso de um modo inegavelmente intencional, consciente e agudo.
3. Faz meia dúzia de anos, vi como um acto de grande lucidez - da tal lucidez humana, racional e estratégica - a escolha e distribuição dos bispos portugueses. A ideia de espalhar pela cabeça das diferentes dioceses, e, em particular, das mais marcantes, bispos com capacidade de intervir na esfera pública parece especialmente avisada. Basta lembrar que, a dada altura, estavam José Policarpo em Lisboa, Manuel Clemente no Porto, Jorge Ortiga em Braga e António Marto em Leiria-Fátima. Qualquer um destes bispos dispunha e dispõe do reconhecimento nacional e da capacidade de representação para intervir, a título próprio, no espaço público e, em particular, no espaço público mediático. Essa mudança lúcida ficou a dever-se a duas nomeações, de algum modo surpreendentes, feitas pelo Papa Bento XVI. Primeiro, a indicação de António Marto para Leiria-Fátima, quando ele estava ainda há muito pouco tempo à frente da diocese de Viseu. E, depois, a indicação de Manuel Clemente para o Porto, quando todos esperavam que ele se conservasse em Lisboa para suceder a José Policarpo no patriarcado.
Bento XVI, ou quem o aconselhou, compreendeu claramente que a Igreja portuguesa precisava de massa crítica, de potencial de intervenção na esfera pública e social e que isso só era possível com a escolha de personalidades "carismáticas" para as funções mais relevantes. Compreendeu, na verdade, que a concentração da capacidade de representação da Igreja num único pólo poderia enfraquecê-la ou fragilizá-la; em suma, não era adequada às sociedades de comunicação dos nossos dias.
4. A recente translação do bispo do Porto para o patriarcado de Lisboa, independentemente dos méritos e das razões de fundo da escolha - que facilmente se percebem -, pode pôr em causa esta compreensão estratégica. Tudo depende obviamente da opção que vier a ser feita para a diocese do Porto. Se se optar por um perfil baixo em termos de esfera pública e mediática, em termos de capacidade de reconhecimento e de representação, isso privilegiará a unipolaridade da Igreja portuguesa. Se se decidir por um perfil alto, que possa ter um direito de cidade na esfera pública - de resto, na esteira de António Ferreira Gomes e do próprio Manuel Clemente -, a margem de intervenção e de capacidade de influência da Igreja sairá reforçada. De um ponto de vista religioso, bem sei que a escolha dos pastores, referências e modelos talvez não obedeça nem deva obedecer, a critérios terrenos. Mas o direito de intervenção "descomplexado" para existir precisa de ser exercido e precisa de quem o saiba exercer.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António