A liberdade de educação e os inimigos da liberdade

Público, 25/08/2013
A proposta de revisão do Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo divulgada na semana passada pelo PÚBLICO tem vindo a suscitar diversos comentários, alguns deles visando simplesmente confundir o esclarecimento do que está em causa e outros demonstrando uma oposição reaccionária a qualquer mudança que prejudique os interesses instalados à volta do nosso sistema educativo ou vá contra as ideologias políticas que o controlam.
Classificar as medidas - como é o caso do cheque-ensino - que muitos países têm vindo a adoptar no sentido de assegurarem a liberdade de escolha da escola aos cidadãos economicamente mais débeis como inseridas numa agenda ideológica que visa beneficiar determinados segmentos do mercado da educação é atirar areia aos olhos das pessoas.
Colocar a questão em termos de clivagem política insanável entre a "esquerda" e a "direita" é castrar a capacidade de as pessoas reflectirem livremente sobre os factos, impedindo-as de terem uma posição oposta à que é propagada pelas "vanguardas iluminadas" do lado do espectro político que lhes é mais próximo.
O artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de que "aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos", traduz valores de "esquerda" ou de "direita"? O n.º 3 do art.º 14.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de que "São respeitados (...) o direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas" traduz valores de "esquerda" ou de "direita"? O artigo 43.º da Constituição da República Portuguesa, de que "É garantida a liberdade de aprender e ensinar" e de que "O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas" traduz valores de "esquerda" ou de "direita"?
O direito à liberdade de educação pertence ao património cultural e político de todos os que são a favor da liberdade. Não separa a "esquerda" da "direita". Separa, isso sim, os defensores da liberdade dos inimigos da liberdade. Estes encontram-se de ambos os lados do espectro político.
Quer isto dizer que basta assegurar a liberdade de escolha da escola a todos os cidadãos, designadamente aos mais débeis economicamente, para tudo ficar perfeito? Claro que não, embora tudo possa ficar bem melhor do que temos actualmente, que é um sistema educativo que faz lembrar o planeamento central do Estado soviético.
O que é que falta? É aqui que o conhecimento da realidade noutros países nos pode ensinar muito. Nos últimos anos têm sido publicados em língua portuguesa diversos estudos que de uma forma transparente e séria procuram disponibilizar aos portugueses análises valiosas sobre o alargamento da liberdade de escolha da escola a todos os cidadãos. O destaque vai para as publicações disponíveis na Internet, no sítio do Fórum para a Liberdade de Educação (www.fle.pt) e no sítio da Fundação Francisco Manuel dos Santos (www.ffms.pt), com destaque para o excelente artigo de Paulo Guinote, "Até que ponto há liberdade na liberdade de escolha?", publicado na revista XXI, Ter Opinião 2012, e para o estudo de Alexandre Homem Cristo, "Escolas para o Século XXI".
A reflexão sobre várias décadas de experiências internacionais tem demonstrado ser necessário distinguir entre as escolas que asseguram o chamado Serviço Público de Educação, que é aberto a todos os cidadãos, e as escolas que não desejam estar obrigadas aos requisitos deste serviço público. Nesta distinção não há lugar para a discriminação com base na personalidade jurídica do proprietário da escola, concretamente se é estatal ou privada, uma característica que não entra na definição de qualidade do ensino ministrado.
Neste artigo iremos falar exclusivamente das escolas que prestam o Serviço Público de Educação, designadamente sobre quais as condições essenciais para que consigam simultaneamente assegurar o direito fundamental de todo o cidadão à liberdade de escolha da escola e para que haja uma efectiva melhoria da qualidade de educação para todos, especialmente para os mais débeis, cultural, social e economicamente.
Dizem as experiências internacionais que a liberdade de escolha da escola deve ser acompanhada dos seguintes requisitos adicionais: (1) uma clara e definitiva flexibilidade e autonomia curricular, pedagógica, administrativa e financeira das escolas, incluindo a selecção do corpo docente, com a correspondente responsabilização de todos os intervenientes no processo educativo, implicando o seu fecho se a escola não tiver alunos que a escolham ou não satisfizer as exigências de qualidade; (2) a não existência de entraves à criação de novas escolas em todos os níveis de ensino, criando, pois, um enquadramento de concorrência efectiva ou potencial para todas as escolas; (3) a não cobrança de propinas para além do financiamento assegurado pelo Estado; (4) a obrigatoriedade de as escolas de uma determinada vizinhança assegurarem solidariamente o acesso à educação de todos os alunos dessa vizinhança, de acordo com certas prioridades bem definidas; (5) a proibição de selecção de alunos, recorrendo-se a um sorteio quando a procura exceder a oferta; (6) a produção de informação exaustiva sobre o valor acrescentado do ensino e outros aspectos que sejam relevantes para a escolha da escola, bem como a criação de gabinetes locais informativos e de aconselhamento aos alunos e às famílias; (7) e, finalmente, um Estado forte que defina os aspectos fundamentais da componente do currículo obrigatório, avalie o cumprimento das metas de excelência do ensino, apoiando os professores e as escolas que apresentem dificuldades, e inspeccione o cumprimento estrito das exigências do Serviço Público de Educação, penalizando quem as não cumpre.
É fácil conseguir tudo isto? É, se houver vontade e capacidade empreendedora na resolução de algumas dificuldades formais! É um caminho que, para salvar a nossa democracia e recriar um futuro para Portugal, teremos efectivamente de fazer.

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