Hipersensibilidade constitucional


De cada vez que Pedro Passos Coelho faz um comentário sobre a Constituição ou sobre o Tribunal Constitucional, logo surge uma nuvem de defensores dos bons costumes constitucionais, acusando-o de ser um perigoso "inimigo" da Constituição. É certo que o primeiro-ministro jurou, na tomada de posse, respeitar a Constituição, mas a Constituição também permite a sua própria revisão - o que significa que é perfeitamente legítimo discordar dela, ou ser "inimigo" de várias das suas alíneas, desde que ela seja respeitada até os famosos dois terços acordarem em modificá-la. Segundo sei, é isso que tem feito o primeiro-ministro, que ainda não mandou nenhuma decisão do Constitucional às urtigas, nem sugeriu à polícia cercar o Palácio Ratton.
Aliás, em Abril de 2010, Passos Coelho considerava absolutamente essencial uma revisão constitucional para "despartidarizar a administração, desgovernamentalizar o país e desestatizar a sociedade". Claro que ainda o ano não tinha terminado e o anteprojecto de Paulo Teixeira Pinto já estava engavetado, por falta de oportunidade política. Mas não se muda a estrutura de uma casa sem olhar para as suas fundações. Mesmo que o PS não queira ouvir falar em revisão constitucional, teria sido útil ao PSD manter a pressão sobre um tema que faz todo o sentido discutir nesta altura, quando as várias dimensões do contrato social estão a ser postas em causa. Aliás - e é uma sugestão que aqui deixo -, seria verdadeiro serviço público este jornal dedicar um dos seus óptimos dossiês "Público Mais" à Constituição, essa desconhecida. Todos precisamos de debater com urgência que país queremos ter - e esse é, por definição, um debate constitucional.
Ora, a Constituição portuguesa mais parece um programa de Governo do que um texto fundador. Eu não quero ter uma Constituição que, no seu preâmbulo, afirma pretender "abrir caminho para uma sociedade socialista". Não quero ter uma Constituição que "preconiza o desarmamento geral" e "a dissolução dos blocos político-militares", quando o muro de Berlim caiu em 1989. Não quero ter uma Constituição tão picuinhas que acha que a "prevenção da toxicodependência" deve estar nela inscrita, discriminando o combate ao cancro ou, sei lá, ao colesterol. Não quero ter uma Constituição que atribui ao Estado responsabilidades sobre "o desenvolvimento da personalidade dos jovens". Não quero ter uma Constituição para "eliminar os latifúndios" e entregar "as terras expropriadas" a "pequenos agricultores, de preferência integrados em unidades de exploração familiar".
Não quero ter uma Constituição com 32 mil palavras, oito vezes maior (a sério) do que a Constituição americana. Não quero, enfim, ter uma Constituição que diga como nos educar, tratar da saúde e cultivar, numa obsessão controladora de todos os aspectos da vida pública, cujo resultado é o que se vê: um texto impreparado para enfrentar a falência económica de Portugal. A Constituição impõe tanta coisa, que o país já não tem forma de pagar aquilo que constitucionalmente é suposto oferecer aos seus cidadãos. E se isto não é assunto digno de debate, então não sei o que seja. Os verdadeiros inimigos da Constituição não são, pois, aqueles que apontam as suas fragilidades - são os que a querem transformar num bezerro de ouro, na qual ninguém pode tocar com um dedo. Lamento, senhores. Não está na Constituição, mas a democracia é incompatível com a idolatria.

Comentários

Francisco Melo disse…
É assim mesmo como eu penso do assunto. Há muitos oportunistas, que falam em democracia, mas não gostam dela, mas da ditadura. E acho que sim, que a Constituição precisaria de revisão (um palpite meu)

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