Senhorios privados de solidariedade social

Fernanda Câncio
DN 20160830

A decisão que a esquerda unida tomou não tem nada a ver com capacidade económica de inquilinos, nem sequer visa proteger os idosos e deficientes. É desnecessária, iníqua, geradora de injustiça social e de justificada desconfiança no Estado, demagogicamente apresentada como um bodo aos pobres. A esquerda no seu pior
A notícia é de molde a humedecer as vistas: "Vão continuar congeladas as rendas para os mais necessitados", diz o Diário Económico. E explica: "O objectivo é congelar as rendas para pessoas com mais de 65 anos, para os portadores de deficiência e para comerciantes que tenham lojas com interesse histórico e cultural." Mais à frente, garante: "O Governo, o PS e o Bloco acordaram adiar o aumento das rendas para quem tem menos capacidade de as pagar."
Parece muito bonito, mas não é verdade. A decisão que a esquerda unida tomou, e que um projeto de lei do PS, apresentado em abril, já prefigurava, não tem nada a ver com capacidade económica de inquilinos, nem sequer visa proteger os idosos e deficientes (o caso das lojas históricas é diferente - à frente se falará dela). É uma decisão desnecessária, iníqua, geradora de injustiça social e de justificada desconfiança no Estado, demagogicamente apresentada como um bodo aos pobres.
Demonstremos. Para começar, a lei em vigor - de 2012, do Executivo de Passos Coelho, mas nisto seguindo a lei anterior, de 2006, da autoria do então ministro da administração interna António Costa, que muito gabou então a sua obra de "descongelamento das rendas" -- estabelece que para pessoas com mais de 65 anos e deficientes com arrendamentos anteriores a 1990, as chamadas "rendas antigas", a renda nunca entra no mercado livre. Findo o período de salvaguarda, que terminaria em 2017, a renda teria como máximo o 1/15 do valor patrimonial do imóvel. Ou seja, as rendas para este grupo de inquilinos nunca seriam realmente descongeladas. Os senhorios não só não podiam despejar idosos e deficientes como tinham um teto para o valor da renda.
O que muda agora é que se estende por mais cinco anos (e findos esses cinco anos se verá, claro - como acreditar que fique por aí?) o período transitório que a lei estabelecia, e durante o qual os inquilinos podiam alegar insuficiência económica e pagar um valor de renda baseado no respetivo rendimento anual bruto corrigido (RABC). Esta declaração de insuficiência económica, que pode ser requerida desde que o rendimento do agregado não exceda 2500 euros/mês (e muito pouca gente em Portugal tem rendimento superior a isso, logo, praticamente todos os inquilinos estão abrangidos), estabelece que a renda não pode ultrapassar 50 euros caso o RABC vá até 500 euros; é de 17% num RABC até 1500 euros e de 25% nos restantes casos. É esta renda, baseada no RABC, que PS, BE, PCP e Verdes querem manter por mais cinco anos.
Mas, ao contrário do que se pretende, não é para poupar os inquilinos que esta alteração é feita. O que estava na lei é que findos os cinco anos do período transitório passaria a ser o Estado a suprir a diferença entre a renda que inquilinos maiores de 65 e deficientes pagavam (com base no RABC) e aquela que passaria a vigorar (e que como já vimos tinha como limite máximo 1/15 do valor patrimonial). Exemplifique-se: a senhora X tem mais de 65 anos e habita num apartamento cujo valor patrimonial é 70 mil euros. Tem um RABC de 700 euros. O senhorio iniciou um processo de aumento da renda com base na lei, portanto a senhora X paga neste momento 119 euros. Findo o período de transição, a renda poderia aumentar, com base no valor patrimonial, para 389 euros. Sendo a diferença entre os dois valores de 270 euros, estes seriam suportados pelo Estado; a inquilina pagaria os mesmos 119 euros.
Compreende-se que seja chato orçamentar umas dezenas de milhões de euros - estima-se que haja 50 mil inquilinos que pediram certificado de insuficiência económica e o valor patrimonial médio é de 64 mil euros - com que o governo e os aliados de esquerda não contariam. É chato, é. Mas não é sério, não é decente impor a privados, e privados há muito sacrificados e sem poder (alguma vez ocorreu a alguém obrigar os bancos a cobrar prestações com base no rendimento de quem fez crédito à habitação?), que paguem a fatura dos bons sentimentos do Estado.
E, espantosamente, impõe-se tal benemerência sem nada em troca. Uma instituição privada de solidariedade social tem isenção de IMI. Um senhorio obrigado pelo Estado a ser santa casa dos seus inquilinos não vê qualquer desconto no seu IMI ou no IRS, nem tão pouco lhe são perdoadas quaisquer outras obrigações legais - se o inquilino lhe exigir obras de reabilitação, terá de fazê-las, mesmo que o dinheiro da renda não chegue para as pagar. Em lado algum se anota qualquer preocupação com a sua capacidade económica ou idade: por definição, o senhorio pode -- então, não é proprietário?
Acresce que a injustiça desta deliberação da esquerda unida não se esgota na forma como se obrigam os senhorios a fazer caridade à força; também no que respeita aos inquilinos há injustiça. Se um idoso com rendimento de 2500 euros por mês tem direito a renda duplamente congelada, alguém com menos de 65 anos (64, por exemplo) com rendimento de 500 euros pode, findo o período de transição, ser despejado ou confrontado com uma renda de mil. É isto "proteger os mais necessitados"?
E, por fim, as lojas históricas. A lei estabelece para os arrendamentos comerciais, durante o período de salvaguarda que o anterior governo fixara em cinco anos, uma renda máxima de 1/15 do valor patrimonial. Esse período terá sido agora prorrogado por mais cinco anos. Sendo as lojas históricas património das cidades e portanto do país, é bem que sejam protegidas - não por cinco anos, para sempre. Mas, mais uma vez, o que não se percebe nem se pode aceitar é que o bem de todos seja garantido pelo prejuízo de alguns, os proprietários das lojas. Que crime terão cometido, o de imaginar poder investir para ter rendimento?
Podem dar as voltas que quiserem, falar dos velhinhos e dos pobrezinhos e de histórias de fazer chorar as pedras da calçada; esta medida nada mais é que poupar dinheiro ao Estado impondo a privados um dízimo de solidariedade obrigatória - dízimo que estão a pagar há décadas. Trata-se de prolongar uma situação de injustiça e iniquidade que o atual primeiro-ministro caracterizou, em 2006, como "uma questão que tem seis décadas e que é responsável pela degradação do património imobiliário das cidades portuguesas, pelo abandono de imóveis e pelo clima de suspeita e desconfiança entre inquilinos e proprietários". Trata-se de o Estado alocar obrigações suas - proteção social e valorização do património classificado - a privados, sem prever disso qualquer compensação. Trata-se de demonstrar aos proprietários que o arrendamento de longa duração é uma aventura na qual não é boa ideia embarcarem - nunca mais. Trata-se daquilo que pode e deve ser descrito como a esquerda no seu pior. Que lástima.

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