Esclerose dos interesses

João César das Neves
DN20160908

Portugal começou este século da mesma forma que o anterior: em decadência. Há mais de 15 anos que vimos sucessivamente a enfraquecer, sem perspectivas de retoma. Em termos demográficos, económicos, financeiros, sociais, políticos e culturais, Portugal vai ficando menor. Na dolorosa trajectória de queda, de vez em quando passamos um novo marco do declínio. O último cartaz do PS assinala a descida de um degrau adicional de abjeção.
O slogan "em defesa da escola pública" não é propriamente original. Aliás limita-se a glosar palavras de ordem anteriores de alguns partidos e movimentos extremistas ou corporativos. Apesar disso, ver o Partido Socialista afinar por esse diapasão constitui um grau inesperado de infâmia. Tal hipocrisia não é habitual nas forças democráticas portuguesas. Uma coisa é ler isto em grupos minoritários, que nos habituaram às atoardas mais boçais. Aliás, na boca deles nem sequer chega a ser hipocrisia, de tal modo a sua mundividência distorce a realidade. Mas a mesma frase sob o símbolo de um dos pilares do regime revela o ponto de degradação a que chegámos.
O PS sabe perfeitamente que a escola pública não está a ser atacada, não sofre qualquer ameaça à sua existência e prosperidade, nem precisa de defensores alvoroçados. Se é essa a preocupação, pode ficar descansado, sem incorrer em despesas publicitárias para declarar motivo tão meritório quanto pacífico.
Mas todos sabem que esse não é o problema. É verdade que existe uma parte do sistema escolar nacional a necessitar de urgente defesa, mas aí o agressor é o governo do PS. Quando o seu Ministério da Educação está empenhado na maior campanha das últimas décadas contra a escola livre e a possibilidade de escolha de pais e alunos, falar em defesa da escola pública é supina impostura. O agressor mascara-se de protector de inocentes para esconder a sua barbaridade. Hitler também fingiu proteger os Sudetas para atacar a Checoslováquia e invocou a defesa dos alemães em Dantzig como pretexto de invasão da Polónia. Claro que o PS é uma força digna e civilizada, sem qualquer semelhança com os nazis. Por isso choca vê-lo embrulhado nos mesmos estratagemas. O senhor ministro não está a defender a escola pública; limita-se a estragar a outra. No final a educação nacional fica mais pobre, as crianças menos defendidas, o país mais desorientado.
Este é apenas um caso pontual, mas tem a clara vantagem de explicitar bem as origens da decadência lusitana. Porque esta, desde 1383, é sempre causada pela mesma doença, a esclerose dos interesses. Alguns grupos capturam o propósito nacional e exploram-no a seu favor. Foi assim com os nobres medievais, os interesses coloniais, a burguesia liberal, as corporações salazaristas. É quando se perde de vista o país para defender o umbigo que Portugal decai. Mas em poucas circunstâncias vemos este vício tão assumidamente proclamado como neste cartaz.
Note-se que a finalidade do partido, do governo, do Ministério da Educação é a escola. Não é a educação, não são as crianças, não é o futuro do país, mas a escola. O aparelho sobrepõe-se ao propósito, o mecanismo é mais importante do que o serviço. E a escola que o PS quer defender não é a escola de qualidade, não é a escola livre, não é a escola participada, mas a escola pública. O que interessa é o imenso organismo de funcionários que se alimenta, independentemente do público que devia servir.
Não é fácil encontrar ocasiões em que a máscara caia tão flagrantemente, para revelar à evidência, com comovente candura e desavergonhado desplante, a mais descarada perversão da função estatal. Temos o poder governamental ao serviço de um grupinho particular. Só faltava o símbolo da Fenprof para a proclamação ficar completa.
Esta é a grande vantagem do actual governo: já nem esconde a decadência. O seu programa é a simples sobrevivência, e o meio usado passa pela vassalagem aos barões. Não se lhe conhece nenhum programa estratégico, uma visão abrangente, uma linha de rumo positivo. Nem sequer um diagnóstico sério da situação. Limita-se a identificar as forças dominantes, prometendo-lhes as benesses adequadas.
Por outro lado, a atitude manifesta que a decadência está a chegar às últimas fases. Vimos algo semelhante no segundo governo Balsemão em 1981 e no segundo governo Sócrates em 2009. É a situação desesperada que faz perder a vergonha, revelando, debaixo do forro, o rude maquinismo. Depois destes governos de recurso e de desespero costuma aparecer a mudança. Seja para o progresso ou para o caos.

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