Beato súbito

P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Observador 24/9/2016

A Igreja católica rejubila com a ‘beatificação’ do padre Jacques Hamel, mas a espontaneidade do extraordinário gesto pontifício não deverá servir de precedente a futuras beatificações ou canonizações.
No passado dia 14 de Setembro, festa da exaltação da Santa Cruz, o Papa Francisco celebrou, na capela da casa de Santa Marta, onde reside, uma Missa especial, porque evocativa do padre Jacques Hamel. Este sacerdote francês, já octogenário, foi barbaramente assassinado por terroristas islâmicos, no passado dia 26 de Julho, enquanto celebrava a Eucaristia em Saint-Etienne-du-Rouvray.
Na Missa papal, para além de alguns familiares do novo mártir, estava também presente uma representação da diocese de Rouen. Um pormenor significativo: a fotografia do padre Jacques foi colocada sobre o altar, junto às velas. Singularidade litúrgica certamente expressiva de que aquela celebração não era em sufrágio do presbítero degolado, mas em sua honra, pressuposta portanto a sua santidade. Por isso mesmo se diz que, os fiéis beatificados ou canonizados, foram ‘elevados aos altares’.
Na sua homilia, o Papa Francisco esclareceu que esse era o seu entendimento sobre o padre Hamel, que expressamente incluiu na “corrente de mártires” da Igreja católica, que remonta aos tempos apostólicos: “Os primeiros cristãos professaram Jesus Cristo pagando com a vida. (…). Esta história repete-se até hoje; e hoje na Igreja há mais mártires cristãos do que nos primórdios. Hoje há cristãos assassinados, torturados, presos, degolados porque não renegam Jesus Cristo. Nesta história chegamos ao nosso padre Jacques: ele faz parte desta corrente de mártires. Os cristãos que hoje sofrem — na prisão, com a morte ou com as torturas — por não negarem Jesus Cristo, mostram precisamente a crueldade desta perseguição”.
Ao afirmar, expressamente, que o padre Jacques Hamel “faz parte desta corrente de mártires”, o Papa Francisco proclamou a santidade deste sacerdote. É certo que o não fez de acordo com os procedimentos canónicos, que geralmente precedem e acompanham as beatificações e canonizações e que, neste caso, não foram observados, dada a evidência do martírio. Nestes processos, o mais importante é sempre a decisão pontifícia e como, em relação ao padre Jacques Hamel, o papa já se pronunciou publicamente, embora de forma informal, deve-se dar por assente o seu martírio. Pode-se pois afirmar que, na prática, beatificou o referido sacerdote francês porque, na conclusão da sua referida homilia, o Papa Francisco disse explicitamente que o padre Hamel “é um mártir, e os mártires são beatos”. Não disse – note-se – que poderá ser beatificado, mas que já é beato, porque foi mártir.
Uma questão que agora se põe, sobretudo aos canonistas e teólogos, é a de saber qual o alcance desta declaração pontifícia. É sabido que o Papa Francisco não é muito amigo dos formalismos curiais, privilegiando um exercício mais espontâneo e pessoal da sua autoridade papal. Deste jeito, chamou a si, de certo modo, as atribuições próprias da Congregação para as Causas dos Santos, à qual competia esclarecer se, efectivamente, o referido presbítero foi mártir, em cujo caso, sem necessidade da prova de um milagre atribuído à sua intercessão, procederia a sua beatificação. Tendo o Papa Francisco tomado uma posição pública sobre esta questão, já não faz sentido que a referida congregação se pronuncie sobre este particular. Este dicastério, não podendo em caso algum contradizer o Santo Padre, de quem recebeu as competências que exerce sobre esta matéria, só poderia agora emitir um veredicto consentâneo com a declaração pontifícia mas, sendo redundante, seria obviamente irrelevante.
Logo após a morte de São João Paulo II, muitos fiéis pediram a sua imediata canonização dizendo, em italiano, ‘Santo súbito!’, ou seja, ‘Santo já!’. Bento XVI entendeu contudo não aceder a essa exigência popular, porque a Igreja prefere não agir, em questões desta natureza, sob o impulso das emoções momentâneas, nem por pressão das multidões. Por esta razão, o direito canónico prescreve um intervalo mínimo de cinco anos, desde a morte do candidato aos altares e a abertura do correspondente processo de beatificação e canonização. Bento XVI dispensou, em relação ao seu antecessor, este prazo – como aconteceu também para a Santa Teresa de Calcutá e para a Irmã Lúcia, a vidente de Fátima ainda não beatificada – mas não as restantes formalidades, tais como o processo sobre a heroicidade das suas virtudes e a constatação científica de, pelo menos, um milagre póstumo, atribuído à sua intercessão. Ao fazê-lo, embora tenha atrasado a solene proclamação da santidade de Karol Wojtyla, certamente que a reforçou e beneficiou: se a mesma tivesse acontecido logo após a sua morte, como a multidão dos fiéis pediu, talvez alguém, mais tarde, duvidasse da sua pertinência.
A Igreja universal rejubila com a ‘beatificação’ do padre Jacques Hamel, mas a espontaneidade do extraordinário gesto pontifício, explicada pela excepcionalidade do caso, pode ser um precedente perigoso para outras expeditas beatificações ou canonizações. Não se trata apenas de defender uma antiga praxe, ou o formalismo da cúria romana, mas de garantir que uma tão transcendente decisão, que compromete a autoridade suprema da Igreja e a credibilidade dos seus beatos e santos, não seja tomada precipitadamente, por momentâneas razões emocionais ou devido a passageiras pressões multitudinárias.
À Esposa de Cristo, a Igreja católica, mais do que à mulher de César, não lhe basta ser honesta, precisa também de parecê-lo aos olhos inquisitoriais da opinião pública, nomeadamente no que se refere aos bem-aventurados fiéis que, em cumprimento do mandato bíblico (cf. Mt 5, 16), eleva aos altares.

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