Não gosto de ser tomado por parvo

Pedro Aguiar Pinto
Povo, 20160912

A ausência de investigação jornalística sobre a validade da afirmação do senhor primeiro-ministro sobre as razões do maior número de matrículas no ensino superior e a sugestão de um fiel leitor do Povo levaram-me a gastar algum tempo e fazer a minha própria investigação sobre o assunto. Hoje é possível fazer isto sentado a um computador com internet e verificar a consistência de tantas afirmações demagógicas que são feitas. É claro que se gasta tempo, mas nem sequer foi muito…

1º passo: se as matrículas aumentaram é melhor saber quantas foram agora e nos anos anteriores. O senhor primeiro ministro não foi muito preciso ao falar de matrículas, já que (a) o processo de acesso a ensino superior decorre em fases e a 1ª fase de colocações terminou no domingo passado (b) as matrículas só acontecem ao longo desta semana, sendo, para isso, necessário que o aluno que ficou colocado numa dada faculdade aceite essa colocação e se vá inscrever. Portanto, o senhor primeiro-ministro quis referir-se ao resultado da 1ª fase de colocações no ensino superior. Com base neste pressuposto fui ao site da DGES (Direcção Geral do Ensino Superior) e consultei um conjunto de relatórios designados Estatísticas de acesso ao ensino superior - 1ª Fase do Concurso Nacional de Acesso (um exemplo aqui), de modo a poder construir o quadro 1.

Quadro 1. Nº de alunos colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso  entre 2008 e 2016
A primeira conclusão a tirar é que de 2008 para cá há uma tendência de descida até 2013 que começa a inverter-se em 2014. Sem querer, o senhor primeiro ministro está a elogiar o seu antecessor, já que a descida, que se iniciou no governo de que o actual primeiro ministro foi membro, foi invertida no mandato do governo anterior e de modo bastante mais acentuado do que no mandato actual como se pode ver no quadro 2 em que se junta uma coluna de variação percentual entre anos sucessivos começando em 2008.
Quadro 2. Variação interanual  do nº de alunos colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso (%)
2º passo: O senhor primeiro-ministro afirmou que “haver mais matrículas no Ensino Superior demonstra bem que a grande quebra não era demográfica, mas sim devida às dificuldades financeiras”. Como é que se pode pôr à prova esta afirmação?
Fui, em primeiro lugar ver se a demografia tem alguma coisa a ver com isto. O racional que segui é o seguinte: o aluno que acede ao ensino superior tem por volta de 18 anos, o que quer dizer que os alunos que estão agora (2016) a matricular-se nasceram em 1998. Fui então ver o nº de nascimentos (nados vivos de mães residentes em Portugal) para os anos entre 1990 e 1998 na base de dados PORDATA
No quadro 3 a primeira coluna refere o ano de nascimento de um aluno que entra no ensino superior no ano que consta da quarta coluna. A segunda coluna reporta o nº de nascimentos e a terceira coluna o nº de alunos colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso

Quadro 3. Confronto do nº de alunos colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso com o nº de nascimentos (nados-vivos) 18 anos antes 


O gráfico acima representa o nº de nascimentos em cada ano e o nº de alunos que, dezoito anos depois são colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso.
Não se podendo (ainda) concluir que a demografia é o factor mais importante no nº de alunos colocados, vê-se claramente que as duas variáveis têm evoluções muito paralelas.Vê-se além disso que a grande quebra demográfica de 1994-1996 tem a correspondente redução no número de colocados 18 anos depois (2012-2014).

3º e último passo: Será que as dificuldades financeiras têm também influência no nº de alunos que acedem à Universidade (o racional baseia-se no custo elevado de frequentar a Universade, mesmo que estatal).
Para isso construi o quadro 4 onde constam dois índices que traduzem o nº de nascimentos tomando como base 100 os nascimentos de 1990 e o nº de alunos colocados 18 anos depois tomando como base 100 o nº de alunos colocados em 1998
Quadro 4. Índice do número de nascimentos (base 100 em 1990).  Índice do nº de alunos colocados na 1º fase do Concurso nacional de Acesso (base 100 em 2008)

A representação gráfica destes índices revela uma correlação muito próxima dos dois indicadores com excepção dos anos de colocação entre 2008 e 2010.


Revela ainda que o nº de colocações, sendo afectado pela redução de nascimentos 18 anos antes, é mais fortemente afectado nos anos de grandes dificuldades financeiras (2012 e 2013). Revela ainda outra coisa que temos que agradecer ao senhor primeiro ministro ter chamado a atenção. É que quando as dificuldades são minoradas, a recuperação é muito visível. Só que a recuperação começou em 2014.
É claro que esta análise tem vasto campo de melhoramento possível: melhor do que os nascimentos que ocorrem dezoito anos antes seria o nº de alunos que completam o 12º ano no ano anterior; seria útil considerar a dificuldade das provas de acesso no nº de estudantes que são colocados, etc.
É este o trabalho que os jornalistas poderiam fazer mas não fazem.
Faz parte da nossa consciência de cidadania sempre que pudermos darmo-nos a este trabalho para não sermos tomados por parvos.

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