Conferência de D. Manuel Clemente nas II Jornadas de Pedagogia «Escola, Sucesso e Excelência»

«Cristianismo na Escola: uma contribuição cultural»

1. A temática que brevemente desenvolverei convosco - “Cristianismo na escola: uma contribuição cultural” – tanto pode apresentar-se em coincidência como em contraste com o tema destas Jornadas: “Escola, Sucesso e Excelência”.Na verdade, não faltariam coincidências. O Cristianismo é também ensinamento, assim iniciado por um mestre (rabi) da Galileia, dois mil anos atrás. Nessa “escola dos discípulos” se transmitiu a sabedoria daquele que de si mesmo dizia ser “maior do que Salomão”, sendo este, para os judeus, o maior expoente da sabedoria antiga. Sabedoria respeitante a todos os aspectos fundamentais da vida e da convivência, quer concretizadas na terra, quer abertas à última dimensão das coisas.Dos primeiros discípulos, em Jerusalém ainda, diz São Lucas que eram “assíduos ao ensino dos Apóstolos”. E a subsequente expansão cristã teve também feição “escolar”, de Jerusalém a Antioquia, de Alexandria a Roma. Desta última restam-nos significativos ecos, como os de S. Justino, professor e mártir, em meados do século II.Podemos também dizer que estas escolas cristãs, de cunho catecumenal e catequético, foram o embrião da escolaridade europeia, como esta se concretizaria depois da queda do Império Romano do Ocidente.Na verdade, as escolas episcopais e monásticas – em especial as dos beneditinos, desde o século VI – continuaram a ter por base e objectivo a Palavra de Deus, estudada e cantada, pois de “obra divina” se tratava. Mas se esta matriz bíblica e litúrgica da escola medieval se manteve até ao advento das Universidades (século XII), também é certo que incluía e transmitia muita cultura clássica, propedêutica ou auxiliar do que a “sacra página” trazia.Uma história de sucesso, então, onde não faltara a excelência. De Justino e os apologistas antigos a Agostinho e outros mestres seus coevos; de Gregório, Isidoro ou Beda, que passaram à Alta Idade Média – de romanos, visigodos e ingleses - o melhor da sabedoria clássica cristã, aos grandes vultos da escolástica, que, sobretudo no século XIII, conseguiram notáveis “sumas” dos saberes gerais, é sempre duma história de sucesso que se trata.

2. À primeira vista, algo diferente se passa da Idade Moderna para cá. Alguns conflitos, assim ditos, “ciência – fé”, que melhor se tomarão como debates internos do próprio Cristianismo, para uma epistemologia mais destrinçada e conforme com as novas observações da altura; a maior autonomia da investigação e do ensino em relação aos antigos centros eclesiásticos; uma nova capacidade de auto-afirmação individual nestes campos, a par da discrepância de autores e hipóteses, aqui e ali menos tutelados e, sobretudo, muito mais difundidos, graças à imprensa… Tudo isto parece contrastar com o sucesso anterior do Cristianismo, na escola e como escola.Ainda mais quando o Iluminismo setecentista, ou o racionalismo e o positivismo que se seguiram, quiseram desmentir o que até aí se tivera como certo, a saber, a fundamentação bíblica do mundo e a essencialidade religiosa da existência. Mais do que dispensáveis, elas tornaram-se para muitos objecto de crítica e refutação, mesmo e especialmente na escola. É ainda neste espírito que se reeditam hoje algumas polémicas, mesmo em matérias que já não as deviam suscitar, tão elucidadas foram.Mas, vistas melhor as coisas, por via direita ou esquiva, é ainda de sucessos que tratamos, ao falar da contribuição cultural do Cristianismo na escola. Em primeiro lugar, porque essas mesmas polémicas de saberes opostos estimularam muitos cristãos no sentido dos aprofundamentos temáticos e das revisões epistemológicas. Surgiram novas escolas e metodologias no campo da Igreja, numa sucessão de factos e figuras que preenchem os últimos séculos. Basta lembrar as inúmeras escolas católicas, da infância às Universidades, e o sucesso que costumam obter nos resultados dos alunos…

3. Mas também podemos falar de sucessos geralmente pouco advertidos, neste ponto preciso da contribuição cultural do Cristianismo na escola. Efectivamente, não é difícil constatar que o progresso científico-tecnológico dos últimos séculos coincide geralmente com populações e territórios tocados pelo Cristianismo, mesmo que já não o assumam nem se retratem nele. Não é esta a altura para voltarmos ao tema das “raízes cristãs da Europa”, que tão versado foi no final do pontificado de João Paulo II. Mas algo se deve lembrar, ainda assim. Resumo-o em dois pontos: a geografia europeia coincide com a difusão do Cristianismo do século V ao século X (do Mediterrâneo ao Mar do Norte e do Atlântico aos Urais); e esta geografia foi preenchida com uma cultura cristã que, além do mais, distingue Criador e criaturas, Deus e César, consciência e mundo, sendo estas as condições básicas do desenvolvimento científico.Na verdade, a alteridade Deus – mundo e a entrega deste ao homem, como campo de responsabilidade criativa, legitimou o seu estudo, sem risco de profanação imediata. Isto quanto à natureza e também quanto à cidade, com a qual o Fundador do Cristianismo não se confundiu, ainda que a quisesse “salvar”, categoria religiosa que atende ao fim último, sem dissolver as responsabilidades intermédias, antes estimulando-as para serem cabais e activas, como caridade social. E a insistência com que o Evangelho apela para a decisão pessoal, como ponto imprescindível de liberdade responsável, recresceu ao nível em que hoje nos reconhecemos e reivindicamos.É nesta sequência que repito: a contribuição do Cristianismo para a sociedade e a escola salda-se como sucesso cultural, mesmo nalguns casos que à primeira vista parecem desmenti-lo: geralmente, são “filhos pródigos”…

4. Há, no entanto, que acrescentar logo que o sucesso do Cristianismo é final e só se consegue à custa do seu “insucesso” imediato. Não é um jogo de palavras. Trata-se, isso sim, da essência dramática e mesmo trágica do Cristianismo, do seu carácter propriamente pascal. Imediatamente, Cristo “fracassou”. A “Primavera da Galileia” terminou nas trevas do Gólgota; o Reino acabou escarnecido na tabuleta da cruz e a pedra rodada tapou o túmulo de tantas promessas aparentemente desmentidas… Mas, dois milénios depois, os cristãos sabem que vivem dum “terceiro dia” que, entretanto, aconteceu. Sabem que a vida se ganha quando se dá; sabem que viver e morrer têm um novíssimo significado a essa luz; sabem que viver é conviver, não no sentido meramente recreativo do termo, mas como dedicação constante ao que é comum, pessoa a pessoa; sabem, muito religiosamente aliás, que se começa sempre pelo mais próximo, pequeno, gratuito e inultrapassável na dignidade de cada existência, qual alicerce da sociedade de todos.Os cristãos sabem-no. E sabem também – com dois milénios de comprovações – que este sucesso definitivo de que vivem contrasta sempre com os sucessos e excelências imediatamente alcançados e tão fugazmente adquiridos, quer na existência individual quer na social e pública.Sabem-no. E por isso mesmo a melhor contribuição cultural que hão-de dar em qualquer processo formativo terá esta marca irredutivelmente personalista e pascal.

5. Traduzamo-la agora nalguns pontos concretos da Doutrina Social da Igreja para o campo educativo e escolar, particularmente actuais e oportunos:Primeiramente em relação à verdade, àquela real consistência das pessoas e das coisas em que nos podemos encontrar individualmente e uns com os outros, preenchendo a consciência e consolidando as relações. É sabido como a atmosfera pós-moderna é muito rarefeita quanto a isto, preferindo dissolver a verdade em “verdades” ocasionais, geralmente tomadas como sensibilidade, espontaneidade ou gratificação. Mas, se o processo educativo visa a definição de alguém, mesmo como projecto de vida, não pode iludir uma plataforma comum em que se encontre com os outros, nem a consistência pessoal em que se realize.Vale aqui a seguinte advertência doutrinal: “O nosso tempo exige uma intensa actividade educativa e um correspondente empenho por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre qualquer tentativa de lhe relativizar as exigências ou de lhe causar qualquer tipo de ofensa” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 198). É, como sempre, a questão do porquê e do para quê, do sentido, assim formulado. Neste ponto, a contribuição cultural do Cristianismo resume-se bem na interpelação que o próprio Cristo nos lança: “ - De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se a si mesmo (ou a perder a sua alma)?”.Interpelação que ultrapassa os limites da confessionalidade estrita, para se repercutir no universo das consciências. Mas que deve estar presente como fio condutor em toda a escola, rumo a um sucesso que seja antes de mais o das próprias vidas e a uma excelência que se aproxime da totalidade.É certo que nunca foi tão difícil garantir este desiderato, desde que deixámos a subsistência pura e simples. Hoje, apesar do muito que falta mundo além, dispomos do que nunca dispusemos em meios como o nosso. Daí que o maior desafio da escola e da educação seja precisamente a coexistência do mercado e da dispersão. As sondagens mostram que um dos maiores passatempos dos jovens é ver montras, em que mais são olhados e atraídos, como consumidores, do que se olham a si mesmos como indagadores e criadores.Inevitável, digamos. Mas que deve traduzir qualquer sucesso educativo na maior capacidade de discernir e escolher bem, sábia e responsavelmente. O melindre é grande, neste ponto, pedindo de raiz uma consideração humanista da economia: “A economia é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa actividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema económico quanto no facto de que todo o sistema sócio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços. A vida do homem, a par da vida social da colectividade, não pode ser reduzida a uma dimensão materialística…” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 375).Todos o sabemos, em especial quando reparamos nos efeitos desestruturantes que uma economia não humanista tem na vida das famílias e no processo educativo em geral. E o melindre é grande, nas actuais disfunções ecológicas e financeiras, que tanto contradizem alegados sucessos e efémeras excelências: “O sistema económico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir correctamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha…” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 376).Creio residir neste preciso ponto, alargável a todo o tipo de bens, o critério mais seguro de sucesso e de excelência, para uma escola imbuída de humanismo – e humanismo cristão.
Braga, 21 de Novembro de 2008

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