O nosso Halloween (ou o pão por Deus revisitado)

INÊS FONSECA                          29.10.2017



Começámos há dois anos. Na manhã do dia de Todos os Santos chovia, e, para entretermos as nossas Filhas antes da Missa, propusemos que se mascarassem de Santas. Rimo-nos com elas, disfarçadas de Santa Clara e de Nossa Senhora das Graças por cima dos pijamas do Frozen.
No ano seguinte, o Capelão do colégio delas explicou que o Halloween não era uma tradição portuguesa. Ficaram divididas entre o Capelão e tudo o que lhes entrava pelos olhos, nas lojas e na televisão. A antecipação da mascarada e da recolha de gulodice punha o Halloween em vantagem relativamente ao Capelão.
Nós também hesitámos, sobretudo por causa do velho elefante que teima em aparecer lá em casa e que se chama "Qual é o mal? No fundo, no fundo, divertem-se e não têm que chegar a saber o sentido daquilo".
Mas, levando a sério o repto do Capelão, arriscámos propor uma alternativa. Convidámos os primos para virem cá a casa na véspera de Todos os Santos, a noite do Halloween, a mesma em que nas ruas do nosso bairro circulam grupos de crianças vestidas de zombies e capas de drácula. Jantaram uma sopa de abóbora dentro de uma abóbora escavada; comeram pizzas e gelado, fizeram muito barulho. Depois, cada um vestiu-se do Santo que quis, que foi o Santo do seu nome. Enquanto se preparavam fomos explicando que Jesus morreu e ressuscitou para que não acabássemos almas penadas a assombrar os vivos; e que, por isso, para um cristão a alegria vem do Céu e não de um Além Halloweenesco, de almas perdidas e sem esperança. Quando entraram no elevador foi uma risota: a habitual bulha sobre “quem carrega no botão” dava-se entre os membros de uma grupeta improvável – a Santa Clara, a Nossa Senhora das Graças, o São Joaquim, a Santa Mafalda, o São Pedro, a Santa Teresinha do Menino Jesus e uma Nossa Senhora das Candeias.
Bateram à porta dos vizinhos e desejaram uma “boa véspera de Todos os Santos", entregando uma pagela; em troca recolheram guloseimas variadas e brigaram quanto à sua divisão. Alguns vizinhos deliciaram-se e contaram como era na sua infância, outros estranharam ver crianças com auréolas em lugar de chifres e forquilhas. Mas todos os trataram bem, porque são crianças e estavam felizes.
Cá por casa não somos muito tradicionalistas, e somos até grandes importadores do que vem de fora, se é bom. Sabemos que a concorrência do Halloween é grande e por isso não as sobrecarregamos com tradições passadas que dizem pouco a crianças do séc. XXI: tentamos encontrá-las no ponto em que elas estão. Acolhemos sem reservas as abóboras, escavamo-las e esculpimo-las (e a sopa faz uma ótima “caminha” no estômago antes da chegada de todo aquele açúcar!); enfeitamos a casa de outono que tanta beleza oferece. Compramos pizzas e deixamo-las comer ‘porcarias’. Fazemos tudo isto no mesmo dia do Halloween porque intuímos que é mais fácil conquistá-las assim, e porque a recolha é provavelmente mais produtiva do que seria na manhã de Todos os Santos. E, no fim do programa, a cereja no topo do bolo: os primos dormiram todos lá em casa, num acampamento improvisado de sacos-cama. Porque tudo o que acaba com uma festa de pijama só pode ser muito bom.

Passou-se um ano. Assim que outubro começou, já elas perguntavam se podiam repetir este “Pão por Deus” revisitado. E vamos repetir, claro, desta vez no prédio dos avós e dos primos. São crianças e por isso, mais que tudo, antecipam as guloseimas, a mascarada, a risota e a cumplicidade entre primos, o acampamento e as conversas até às tantas – demasiado açúcar no sangue tem este efeito. Mas nestas idades em que têm medo de histórias de marias sangrentas, espíritos e demónios, não deixa de ser curioso que os adultos lhes proponham um programa que envolve todos os seus piores pesadelos. Às nossas Filhas queremos antes que adormeçam felizes, e para isso propomos-lhes a esperança do Céu. Quem mais quer o mesmo?

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