António Costa 2.0?

MANUEL CARVALHO   PÚBLICO   25.10.2017


Costa errou e transfigurou-se porque a realidade lhe entrou pelos olhos dentro.




Não vale a pena continuar a “bater no ceguinho”. António Costa recebeu na semana passada a maior lição política da sua vida. E aprendeu alguma coisa. Aprendeu que a soberba o afasta da realidade. Deu conta que o país ainda conserva um mínimo de decência e de espírito de comunidade para reagir a governantes calculistas que, perante um desastre nacional onde portugueses morrem queimados nas suas casas ou nas ruas das aldeias, se preocupam principalmente em ficar ao longe para salvar a sua pele. Percebeu que, sendo cruciais, os dados da economia não valem tudo. E, talvez a maior lição de todas, deu conta que governar a sério, com responsabilidade e sentido de Estado, é muito mais do que cortar impostos, devolver salários ou passar a mão pelo pêlo da função pública; é uma função que exige rasgo, coragem e capacidade de tomar medidas urgentes, rápidas e duras para proteger o país e as pessoas. Entre o primeiro-ministro complacente do pós-Pedrógão Grande e o primeiro-ministro de hoje há, por isso, sinais de mudança. A moção de censura do CDS, que fazia todo o sentido há uma semana, perdeu hoje uma parte desse sentido.

A força motriz para a mudança do primeiro-ministro foram muitas coisas ao mesmo tempo. A indignação das pessoas perante o seu discurso cerebral e indigno de um país em sofrimento esteve na base. Mas foi o discurso do Presidente-Rei que, ao estabelecer um parâmetro de comparação, demoliu a imagem de António Costa. Num momento de tão grande fragilidade, como o deputado João Galamba se apressou a notar, Marcelo Rebelo de Sousa levou o semipresidencialismo ao limiar do presidencialismo, impôs novos tectos de ambição ao Governo, obrigou António Costa a mudar de expressão e a apresentar serviço. Mas a verdade é que Costa reagiu. Reconheceu falhas e agiu em conformidade. Os seus pedidos de desculpa pareceram sentidos e devem ser aceites. A explicação que deu ao país sobre a forma como se exibem estados de espírito só por preconceito ou má-fé não é compreensível. E a velocidade com que, no prazo de uma semana, mostrou trabalho é claramente testemunho de um novo registo nesta governação conformista e modorrenta.

É evidente que, para poder avançar tanto e tão rapidamente nas reformas do sistema de protecção e combate aos incêndios florestais, o Governo tinha já as portas abertas pelo relatório da Comissão Técnica Independente. Mas fazer contas, definir prioridades e apresentar medidas tão transversais aos ministérios sempre ciosos das suas prerrogativas não é coisa pouca. Há zonas cinzentas para esclarecer, houve ruídos de comunicação que deixam subentender alguma confusão (o caso mais óbvio é o do ministro do Ambiente anunciar mais 100 brigadas de sapadores florestais que serão tuteladas pela Agricultura), há incertezas e eventuais riscos a correr; mas, no essencial, aquilo que o Governo foi capaz de apresentar numa semana é muito do que dezenas de silvicultores ou especialistas em fogos florestais andam a dizer há anos. É muito e é bom. Por isso se ouviram elogios do Presidente-Rei e, com um ou outro remoer, apoios da generalidade dos partidos.

Nesta pressa em mudar e de apresentar serviço, o Governo teve até o mérito de avançar contra os interesses do nefando lobby das corporações de bombeiros e de dar o peito às balas a essa nova religião estúpida que se celebra com a crucificação do eucalipto e das empresas de pasta de papel. Jaime Marta Soares não foi ouvido com o estatuto de senador a que se habituou. Os bombeiros vão ter de ser submetidos ao poder de uma unidade de missão ou ao Exército e tinha de contestar as medidas anunciadas. Tinha de protestar. De fazer prova de vida. Mas mais importante foi a nomeação de Tiago Martins Oliveira para liderar a unidade de missão, mesmo sendo ele um quadro superior da Navigator Company, o rosto do eucalipto demoníaco. O Bloco tratou de exprimir a sua aversão radical a uma indústria fundamental para o país e a uma espécie florestal que, se for contida e bem gerida, é tão nobre como as outras. Enfrentar o coro dos que tentam criminalizar a fileira silvo-industrial que gera a mais importante exportação líquida do país é um dever que o primeiro-ministro fez bem em assumir.

Para lá da agenda, há outros sinais que vale a pena considerar. Passar de um momento de depressão horrível originado pela incapacidade de perceber o desastre que atormentava o país para uma situação de controlo de danos e da agenda política mostra muito sobre o primeiro-ministro. Mostra um político que faz da cautela fria e da leitura racional a base da sua receita. Mostra um político capaz de se transfigurar perante a necessidade das circunstâncias. Em apenas sete dias António Costa foi próximo e distante do Portugal que sofre, relaxado e empenhado na procura de respostas para os graves problemas do interior, frio e emocional nos rostos que escolheu para enfrentar a ira do país. O seu faro político para se ajustar à realidade da situação é afinadíssimo. E não vale a pena cair no cinismo dizendo que tudo não passa de representação teatral. Costa errou e transfigurou-se porque a realidade lhe entrou pelos olhos dentro.

Será que o Governo fica mais forte depois desta semana horrível? É natural que muitos portugueses jamais venham a perdoar a insensibilidade de António Costa (ou, para respeitar a sua leitura sobre esta questão, a sua falta de empatia). O puxão de orelhas do Presidente-Rei abalou a aura da sua autoridade. Aos olhos de muitos socialistas e de apoiantes da esquerda, Costa deixou de ser aquele líder que não falha nunca. Mas, bem o sabemos, na política tudo é volátil. No essencial, o Governo conservou a lealdade dos seus parceiros de apoio parlamentar. O novo membro da equipa oferece ao primeiro-ministro a fidelidade e proximidade de um escudeiro. E sim, dentro em breve, o Governo voltará a desfiar o rosário de maravilhas que reduzem o défice, não travam o crescimento e alimentam a euforia de um país habituado a resumir a política à gestão do Estado.

Pode ser ainda que a grande vitória de Costa nesta semana terrível (a energia e a rapidez com que ele e o seu Governo reagiram e apresentaram medidas) se venha a tornar forma de vida. Pode ser que ele tenha aprendido a lição de que, na vida colectiva de um país, há momentos em que é preciso cerrar os dentes e ter coragem para enfrentar a gravidade dos problemas. Para o futuro, António Costa será sempre o primeiro-ministro do Verão em que o Estado foi surpreendido por uma desgraça (a de Pedrógão) e nada fez para evitar outra desgraça (a do dia 15 de Outubro). Mas ainda vai a tempo de recuperar o essencial dessa mácula. Basta que seja o que foi esta semana: franco, despido da sua pontual arrogância, enérgico e capaz de colocar o interesse do país acima dos lobbies, dos estigmas ideológicos e da sua propensão para posicionar o calculismo político acima até das estrelas.

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