Inflacionar as notas não deveria ser problema

Alexandre Homem Cristo
Observador 17/8/2015

Há escolas que inflacionam notas. Mas, ao contrário do que se pode pensar, o maior problema não está aí, mas na uniformização e na necessidade de cada escola avaliar de acordo com os mesmos critérios.
Os dados sobre os exames nacionais mostram que um conjunto de escolas inflaciona repetidamente as notas dos seus alunos, beneficiando-os no acesso ao ensino superior. Ninguém se pode alegar surpreendido. Há anos que os pais alertam para a situação e, de resto, esta tornou-se numa daquelas notícias cíclicas que, a cada Agosto, os jornais publicam enquanto o país está a banhos. Só que, apesar de ser silly season, não basta apontar o dedo acusador contra essas escolas, pois mais do que indignação a questão merece reflexão. É que, na sua simplicidade, a inflação das notas por algumas escolas denuncia (pelo menos) dois problemas estratégicos do sistema educativo com que, mais cedo ou mais tarde, teremos de lidar: a injustiça das regras de acesso ao ensino superior e a intolerância do próprio sistema educativo à autonomia.
O primeiro problema é o mais óbvio: a inflação das notas dos alunos nas escolas tem por objectivo a manipulação das regras de acesso ao ensino superior, com vista a dar-lhes um pequeno empurrão competitivo na hora de lutar por uma vaga num curso. É uma prática recorrente, ilegítima mas do conhecimento público, tendo sido discutida nos jornais, em estudos académicos ou pelo Conselho Nacional de Educação. E, no entanto, nada acontece. Escrevi sobre isso no Observador há vários meses e, sinceramente, não vejo que a questão tenha entretanto ficado mais próxima da resolução. Não valendo a pena retomar a argumentação que fiz em defesa de novas regras de acesso ao ensino superior, basta assinalar que, nos últimos meses, as propostas que vieram a público (por exemplo, houve a proposta de criação de regras de acesso distintas para universidades e para politécnicos) só agravariam a injustiça do actual modelo de acesso ao ensino superior.
O segundo problema é menos óbvio mas ainda assim preocupante: o sistema educativo português parece intolerante à autonomia das escolas. Por um lado, dá maior liberdade de decisão a directores e professores. Por outro, impõe regras que condicionam todas as opções que eles tomam, como se a sua liberdade se limitasse à execução do que lhes é pedido. Ou, adaptando à situação em causa, por um lado dá-se autonomia aos professores para avaliarem os seus alunos durante os anos de ensino secundário e, por outro, reprime-se essa autonomia impondo uma uniformização de critérios de avaliação. A escola que ousar dar notas aos seus alunos recorrendo a metodologias diferentes das utilizadas pelas escolas vizinhas arrisca-se a uma visita da inspecção. Ora, ao contrário do que se poderia pensar, o maior problema não está na inflação das notas, mas nesta uniformização e na necessidade de cada escola avaliar de acordo com os mesmos critérios.
Nos últimos 10 anos, o sistema educativo português funcionou em tensão, dividido entre padronização e autonomia. E, observando ao longe, inquieta que, por mais que politicamente se defenda a autonomia nas escolas (como tem sido o caso do actual Governo), o que sobressaia dessa tensão seja a certeza de que se irá sempre esbarrar em características do sistema de que ninguém parece disposto a prescindir. A regra não está escrita, mas vale como lei: na teoria, a autonomia é boa porque permite às escolas responder melhor às necessidades dos seus alunos; na prática, dar poder de decisão a directores de escola é visto como uma via rápida para a arbitrariedade, num sistema em que apenas a uniformidade significa justiça.
Poderia preencher páginas com exemplos para além do já referido, mas vou directo ao ponto: o sistema tem de mudar. A manipulação das regras de acesso ao ensino superior e esta intolerância à autonomia parecem problemas diferentes, mas a sua raiz é a mesma – ambas reflectem um sistema educativo construído em nome do igualitarismo e da uniformização. E se isso foi importante (e deu bons resultados) no passado, está claro para todos (da UE à OCDE) que o futuro passa inevitavelmente por mais pluralismo e mais diversidade de oferta educativa. E isso só é possível se houver uma real autonomia nas escolas.
Como tal, sabendo que não existem soluções imediatas ou perfeitas, repito um apelo que fiz no passado: alterem-se as regras de acesso ao ensino superior, para assim separar o ensino secundário do superior e retirar a necessidade de padronização da avaliação nas escolas. Não há por onde fugir à questão. Enquanto permanecer amarrada ao centralismo da contratação de recursos humanos, à padronização da avaliação dos alunos e ao actual modelo de acesso ao ensino superior, a autonomia será um projecto interessante mas impossível. E o nosso sistema educativo ficará aquém do seu potencial. É certo que esse cenário satisfaz muitos agentes educativos, nomeadamente os que se revêem ideologicamente nesse centralismo. Mas, na verdade, prejudica os que realmente importam – os alunos. E é em nome destes que as políticas e reformas devem ser discutidas.

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