António Costa vive em 1995

Maria João Marques | Observador | 5/8/2015

O pior do outdoor do PS – que nos coloca a todos em maus lençóis – é a sua mensagem ser a demonstração cristalina de que António Costa não faz a mais pequena ideia do país que se propõe governar.

Estava eu a planear escrever sobre assuntos leves e etéreos durante o mês de agosto, quando o apelo irresistível do outdoor-cena-evangélica do PS me trocou os planos.
Da parte estética do artefacto – que nos entristecia por não conter nenhuma pomba envolta em aura dourada (a malta publicitária do PS deve querer guardar os raios luminescentes para as aparições publicitárias do magnífico Costa) e se notabilizava pela ausência de sarças ardentes e, eventualmente, pela plantação de cannabis a desaparecer no horizonte – já fiz chacota suficiente nas redes sociais. É que o menor dos problemas do cartaz é a sua estética. Também interessa pouco que vá ser retirado a correr porque, asseveram pessoas do PS (depois de numerosos shots de absinto com xarope para a tosse, de modo a evitarem esta última e a adormecerem a vontade de gargalhar), a sua mensagem foi tão eficaz que bastou ao outdoor viver uma semana.
Não. O pior do outdoor – e que nos coloca a todos em muito maus lençóis – é a sua mensagem ser a demonstração cristalina de que António Costa não faz a mais pequena ideia do país que se propõe governar. (Ou, na formulação que Costa usou na entrevista ao jornal i, ‘concorre’ para governar, supondo-se que no concurso de 4 de outubro.)
O outdoor make love not war do PS lembrou-me de imediato um dos mais tontos outdoors da nossa democracia: o ‘razão e coração’ que Guterres aceitou, em 1995, ao mesmo publicitário de Costa. Eu estava acabada de sair da adolescência, mas mesmo assim recordo-me de considerar aquele cartaz um apelo intragável à emotividade mais básica dos eleitores. Trazia a lemechice dos reality shows para a política. E era marcadamente socialista e intervencionista, claro: a parte do ‘coração’ garantia que teríamos o estado a tomar conta de nós mesmo contra a nossa mal avisada vontade.
O mais perturbador naquele cartaz era a proposta de criar um vínculo afetivo entre os cidadãos e o governo (e há maior demagogia que esta?). Porque, caros militantes do PS sequiosos de afeto, governar um país é uma transação. Tiram-nos recursos sob a forma de impostos e em troca fornecem os bens e serviços públicos, desenhados segundo a forma que a maioria das últimas eleições legislativas escolheu: mais ou menos prestações sociais, educação mais pública ou mais privada, mais autoestradas ou menos impostos, e um longo etc. Não há cá espaço para palavras ternas ou agradecimentos ao coração de manteiga do bondoso ministro (o ordenado pago pelos contribuintes é mais que suficiente). Se o ministro tiver dificuldades em criar relações de afeto, compre se faz favor um livro de Dale Carnegie e não importune o eleitor.
Mas o outdoor de 1995 vinha a seguir à década cavaquista, quando a opinião publicada se queixava hora sim e hora também do ‘economicismo’ do governo, e pegou. Guterres queria marcar a diferença com a frieza cavaquista – porque, como se sabe, os políticos de esquerda rivalizam no amor ao próximo com São Martinho, mas os políticos de direita são zombies que nem se enternecem quando veem fotos de bebés ou gatinhos no Facebook.
E é isto que Costa não entende. Que os eleitores em 2011 se tornaram cínicos e descrentes das propostas afetuosas dos partidos políticos. Que já ninguém compra que um político de topo que fez parte de todos os governos socialistas dos dezasseis anos anteriores a 2011 seja sequer vagamente mudança ou que possa reclamar migalhas de credibilidade. Costa é, como poucos, parte do problema de 2011 e do status quo. Já não aceitamos argumentário de 1995.
Pelo que deliciosamente fatal no outdoor flower power do PS é lembrar aos eleitores que a tempestade da fotografia foi criação do PS, com Costa a ajudar com entusiasmo. E o mesmo se aplica à retórica indigna, que é já o que resta a Costa, de atirar lama para Passos Coelho. O mesmo Costa, relembro, que se propõe, quando governo, a dificultar as investigações e processos judiciais a políticos.
Sou muito a favor de todo o escrutínio democrático e Passos Coelho, como primeiro-ministro, deve ter escrutínio redobrado. Mas não vejo como pode Costa, apoiante incondicional de Sócrates, que só contrariado aceitava dizer um quinto de verdade, acusar Passos Coelho de estar ‘viciado no engano’. Costa também não perceberá que quanto mais usar argumento morais contra Passos Coelho mais recorda aos eleitores o pretendente nacional a preso político?
E os empréstimos de Santos Silva a Sócrates, são pormenores aceitáveis para Costa? Os americanos, esses rústicos de pele vermelha e toucado de penas que não entendem nada de democracia, acham que, pela parte que lhes toca, não. Veja-se que se passa com Hillary Clinton do outro lado do charco. Hillary ajudou o banco UBS a evitar processos fiscais poupar milhões que, de seguida, pagou ao seu marido 1,5 milhões de dólares pelos dotes de conferencista e emprestaram mais de 30 milhões de dólares à Fundação Clinton.
Incrivelmente, há quem nos Estados Unidos se queixe desta curiosa entreajuda entre governantes e os que beneficiam das suas políticas. Uns histéricos insuportáveis. Os americanos estão mesmo a precisar de um outdoor do PS.

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