Espremer direitos

Maria João Marques | Observador | 22/4/2015
No caso da prova de amamentação, indigna-se quem acha que um trabalhador tem o direito de mentir e defraudar o empregador. O direito à aldrabice, como se sabe, foi uma conquista civilizacional do PREC
A indignação das boas almas sensíveis deste fim de semana veio a propósito de notícias (dadas – não fossem as boas almas sensíveis estarem distraídas – em tom de denúncia de grave atentado aos direitos humanos) do pedido a duas enfermeiras do Porto para fazerem prova de amamentação. Notícias que usavam termos mais próprios para a ordenha (havia que sugerir imagens repudiantes) do que para a amamentação: ‘espremer mamas’ e ‘esguichar leite’. Usar o neutro (e correto) ‘tirar leite’ seria demasiado delicado e poético para a intenção das notícias, presume-se.
Aproveito para informar já que as manchetes do próximo fim de semana dos jornais que com tanto enlevo protegeram a amamentação (e tenho um ataque de tosse enquanto escrevo isto) serão do calibre de ‘malévolos polícias impedem assalto a supermercado por pobres orfãos adolescentes desadaptados’.
E as boas almas que logo rasgaram as vestes nas redes sociais (o que permitiu diversão no twitter, que estas indignações tontas têm consequências boas) vão de seguida organizar uma petição para banir dos consultórios dos médicos de família a obrigação de se abrir a boca, estender a língua e dizer ‘aaaah’ para que o médico nos examine a garganta, que isto é figura muito triste que fazem os doentes e não pode ser. E vão também – em defesa da perigada honra feminina – juntar-se às reclamações dos muçulmanos residentes na Europa que exigem que as suas recatadas mulheres sejam examinadas por médicas e enfermeiras nos hospitais públicos. Onde já se viu uma senhora decente ter de mostrar as mamas a um homem que não o marido? – é a pergunta comum dos indignados progressistas portugueses e dos muçulmanos radicais.
Bom, eu tive a sorte de crescer numa família conservadora que na infância e adolescência me levava no verão para uma praia espanhola onde o topless era comum e encarado com normalidade, pelo que tenho alguma dificuldade em responder com outra coisa que não o riso a tanto puritanismo. E – ao contrário da esmagadora maioria dos indignados, incluindo indignadas – amamentei e gostei de amamentar. Estou em condições de garantir (as boas almas perdoem-me) que não seria nenhuma indignidade pedirem-me para tirar leite (com toda a privacidade) para mostrar ter direito a trabalhar menos duas horas por dia integralmente pagas pela entidade patronal.
Como aqui referi, as mulheres que amamentam e gostam de amamentar chegam ao despautério de amamentar em público. E, para mim, tirar sangue para fazer a análise à prolactina (a alternativa a tirar leite) é muito mais desconfortável e invasivo. Mas nada que demova as almas sensíveis que referem ‘direitos’ (que interessa não se estar em situação para os ‘direitos’?) ou uma baixa médica por causa da ‘pilinha’ (como se baixas não necessitassem de diagnóstico de doença e o empregador não pudesse requerer uma junta médica para a reavaliar). Argumentário irrefutável; aplaudam, sff.
Mas confesso que perante as ultrajadas notícias, eu também sofri de algumas indignações – é bom não fugir em demasia ao ar do tempo.
Indigno-me por não ter lido que as horas de redução para amamentação são pagas por outro (contribuintes, no caso de organismos públicos, ou empresas), pelo que usufruir desta redução não se amamentando (coisa comum) é uma fraude com valor monetário. Não vale a pena o jornalista militante confundir isto com a possibilidade de trabalhar em part-time para dedicar tempo à prole (também o objetivo declarado por uma das enfermeiras), com correspondente redução de ordenado. Se me agastam chefias que condicionam as licenças parentais (e idas às reuniões de pais e festas da escola), também me desagradam mães trabalhadoras que mentem.
Indigno-me porque não se questionou como passam os médicos a declaração de amamentação para entregar ao empregador. Simplesmente reproduzem as afirmações das mães (e, neste caso, o atestado é tão médico como a minha lista de supermercado)? Não querem saber se estão a ajudar a burlar os contribuintes ou as empresas? Ou fazem algum teste – lá está, pedindo às senhoras que tirem um bocadinho de leite? E como é possível em algumas profissões ser tão comum muitas mulheres amamentarem vários anos, quando o tempo de amamentação médio em Portugal anda nos três meses e são raras as mulheres que amamentam depois dos seis meses de idade dos bebés? O jornalista militante não quer saber.
E, sobretudo, indigno-me que se questione o direito de uma entidade patronal pedir à sua equipa médica para verificar se uma mulher que pretende trabalhar menos duas horas por dia, mas de ordenado intacto, de facto amamenta.
Só pode obstar a isto quem, no fundo, defende que um trabalhador tem o direito de mentir e defraudar o empregador. Este direito à aldrabice foi, quem sabe, mais uma conquista civilizacional dos tempos do PREC.

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