Conversa de elevador

JOÃO TABORDA DA GAMA | DN | 2015.04.23

Ia escrever sobre elevadores. Pode escrever-se sobre elevadores quando milhares de pessoas se afogam no Mediterrâneo? Tenho alguma coisa relevante a dizer sobre a tragédia? Elevadores são coisas relativamente novas para mim. Quatro quintos da minha vida foram sem elevador: ou o prédio não tinha, ou rés-do-chão não o justificava. Vivo há quinze anos num terceiro andar sem elevador, cinquenta e tal degraus, mas viajo muito de elevador em trabalho, doze andares por dia, no mínimo duas vezes.
Ia escrever sobre como me irritavam as pessoas que carregam no botão de fechar a porta do elevador. Ando a pensar nisto há mais de um ano. Temos o direito de nos irritar com estas coisas de nada, quando tantos morrem?
Entramos, carregamos para onde queremos ir, medimos o terreno e ganhamos fôlego para vinte e oito segundos de intimidade. Muitas vezes, quase sempre, há alguém que carrega no botão que apressa o fecho da porta, que apressa a subida, que apressa a chegada. Uma intromissão na ordem natural do elevador em cada paragem. E se as outras pessoas - no meu elevador chegamos a ser doze - quiserem esperar que as portas fechem ao seu ritmo? Eu, o outro e os outros.
O problema das migrações, toda a gente sabe qual é, é o problema de nos preocuparmos mais connosco e com os nossos do que com os outros. E o problema é estas banalidades serem fáceis de esquecer, ou de desvalorizar. O egoísmo da guerra, da corrupção, da falta de pôr em prática o que se tem de fazer, os medos da multiplicação das gentes e da divisão dos cobres. Nada li ou estudei sobre migrações, mas o que muitas vezes me espanta não é serem tantos, é não serem mais. No excelente "Mais uma catástrofe mediterrânica", de Mattathias Schwartz na The New Yorker, além de se recordar como resolver o problema na raiz, trazendo paz e prosperidade às fontes de migrantes, sugere-se uma coisa muito simples, que aquelas pessoas possam migrar de avião, impedindo-se assim que morram no Mediterrâneo ou em países como a Líbia.
O barco que se virou nesta semana tinha sobretudo homens, as mulheres e as crianças não tinham conseguido entrar, sobreviveram na margem, viúvas, órfãos, frágeis (fará sentido sequer falar nuns mais frágeis do que os outros naquele contexto?). O The New York Times de há dias trazia uma reportagem impressionante chamada "Um milhão e meio de homens negros em falta". A peça mostra como a morte e a prisão fazem que, nos EUA, na faixa etária dos 24 aos 54 anos, por cada cem mulheres negras existam apenas 83 homens negros que não estão presos. Em algumas cidades são apenas 60. Por cada cem mulheres brancas há 99 homens brancos não encarcerados. Noventa e nove. As duas coisas, a encarceração em massa de negros e as mortes no Mediterrâneo, não são coisas tão descosidas quanto isso. Além de uma sinistra ligação histórica entre os dois fenómenos, também a noroeste tudo redunda numa ligação mortal entre diferença e pobreza. Por todo o lado, problemas com os outros, surgem com insistência notícias da perseguição a moçambicanos na África do Sul.
Em face destas tragédias, sou pouco original, penso nos meus filhos, na sorte que vamos tendo, incomparável, penso em como lhes explicar tudo isto, nas perguntas que vão fazer, assassinas: "Porque é que eles não podem viver cá?"
Estamos todos fartos de perguntar, e ouvir perguntar, como aceitar melhor a diferença, como aceitar melhor "o outro". Passo três minutos por dia no elevador do trabalho. Vão ser doze horas em 2015. Há dias em que passo mais tempo em elevadores do que com alguns dos meus filhos. O que nunca tinha pensado, até estar aqui a escrever este texto, é no tempo que me deram os apressadinhos do elevador, sempre de dedo em riste apontado ao botão de fechar as portas. Pode ganhar-se quatro segundos por viagem, doze segundos por dia, mais de uma hora por ano. Doze segundos podem ser a diferença entre algum dos meus filhos estar acordado ou estar a dormir, a diferença entre nos vermos ou não, falarmos ou não, a diferença entre um dia ganho ou um dia perdido. Tenho a certeza que devo muitos dias aos apressadinhos. Devo muito. Aos outros.

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