Salazar e a maçonaria
Joaquim Silva Pinto
ionline 2014.04.26 e 2014.05.03
Salazar e a maçonaria (Parte I)
Comecemos com a seguinte interrogação: terá sido Salazar um perseguidor da maçonaria, como é recorrente no discurso generalista posterior a Abril de 74? Franco foi-o certamente no país vizinho
Depois da publicação há meses de dez artigos semanais subordinados ao tema genérico de Recordações e Recordatórias, em que destaquei personalidades e factos do passado, diligenciando pôr tais evocações ao serviço do futuro, regresso à colaboração com o jornal i com outra série, agora inspirada pelo propósito de confrontar o leitor com Perguntas de Difícil Resposta, deixando ao critério de cada qual contribuir para o apuramento da verdade. A limitação de espaço convencionada com a direcção, que torna as mensagens mais directas, implica que os temas escolhidos sejam repartidos em duas ou três partes, pelo dever de trazer ao conhecimento e ao debate o que vivi ou soube de fonte segura. Poder-se-á assim contribuir para desfazer meias verdades de autoproclamados historiadores e politólogos. Comecemos pois com a seguinte interrogação: terá sido Salazar um perseguidor da maçonaria, como é recorrente no discurso generalista posterior a Abril de 74? Franco foi-o certamente no país vizinho, ao proclamar que os dois obstáculos à Espanha una e católica, que os textos paraconstitucionais consagravam, eram os comunistas, frequentemente apelidados de sovietes, e os maçons. Não hesitou, inclusive, numa prova de força, em desrespeitar a linha dinástica dos Bourbons, preterindo no regresso à monarquia o chefe da casa real pelo seu filho, por ter aquele como membro da maçonaria. Mas entre nós o todo-poderoso chefe do governo iniciou o seu percurso em harmonioso convívio com o general Carmona e o colega da Universidade de Coimbra Alberto dos Reis, ambos altos postos da hierarquia maçónica. Depois, com o passar dos anos, foi valorizando politicamente diversos maçons, reconhecendo-lhes competência e integridade moral, sem ensombrar tais nomeações pelo facto de ser voz corrente que pertenciam convictamente à respectiva fraternidade. Lembro o meu saudoso amigo Albino dos Reis, prócere de Aveiro, que foi ministro do Interior e depois terceira figura do regime, como presidente da Assembleia Nacional. Veio Albino, enquanto republicano e de feição liberalizante, a servir de avalista político aos elementos que durante o mandato de Marcello Caetano pugnámos pela renovação, a começar por Melo e Castro, que sem o seu apoio dificilmente teria sido designado presidente da comissão política da União Nacional, a partir de onde desencadeou o corajoso processo da criação da denominada ala liberal da Assembleia, formando um grupo em que muitos nem se conheciam. Cito também o almirante Sarmento Rodrigues, ministro do Ultramar, e Supico Pinto, que, depois de ter tido a tutela da pasta da Economia, veio a ser, como presidente da Câmara Corporativa (componente parlamentar com a natureza de conselho económico-social), o principal confidente de Salazar nos últimos anos do seu consulado, propondo ministros e altos cargos, a par de contribuir para a saída de outros. A isto se deve acrescentar que o melhor amigo do presidente do Conselho foi sempre o respeitado professor de Medicina de Coimbra Bissaia Barreto, que quinzenalmente vinha jantar à residência de S. Bento, dispensando o anfitrião a habitual presença à mesa da governanta para que pudessem conversar a dois, seguramente não só para evocar a coincidência na docência da universidade. Nem Salazar esquecia o convite, nem Bissaia deixava nunca de comparecer, embora confessasse com humor que a conversa era melhor que a ementa. Tais encontros provocavam não só a apreensão como o ciúme do cardeal Cerejeira.
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Salazar e a maçonaria II
A presença em Portugal do sumo pontífice motivou um encontro, que este desejou breve. Não se entenderam sobre a descolonização. Salazar, de rosto carregado, não deixou todavia de cumprir a obrigação protocolar de acompanhar Paulo VI ao avião
LEMBRANDO O CARDEAL CEREJEIRA , direi que, apesar de desconfiar do governo de Marcelo Caetano, me dedicava uma simpatia de pendor paternalista, por me ter conhecido nos anos 50 empenhado membro da Juventude Universitária Católica. Num fim de tarde de confidências, após deixar a titularidade de bispo de Lisboa, também Salazar já tinha morrido, o que fora indiscutido mentor do colégio episcopal transmitiu-me o seu desgosto pelo facto de o amigo, com quem compartilhara em Coimbra ideais, propósitos e até residência, se ter, a partir de certa altura, afastado da prática rigorosa da religião, esquecendo missas e recusando confissões. Haverá que dar desconto a esse desabafo crítico porque se tinham distanciado, desde o pretendido projecto da criação da Universidade Católica, prioridade para a Igreja a que Salazar sempre se opôs, como defensor intransigente da exclusividade do ensino superior pela escola pública, com uma argumentação reticente à intervenção no ensino da iniciativa privada, em termos não distantes dos que hoje caracterizam o discurso de extrema- -esquerda. A evolução política tem destas vicissitudes. Contudo, haverá que perguntar se essa quebra de zelo como praticante, que não implicava necessariamente falta de fé em Deus, teria sido motivada pelas más influências apontadas pelo cardeal. Estar-se-ia a referir aos interlocutores maçónicos? Pergunta de difícil resposta. Sem pretender influir no leitor, não afasto porém como explicação desse distanciamento a inadaptação face às renovadas interpretações e práticas desenvolvidas a partir do Concílio Vaticano II. Em Portugal, o laicado e parte do clero moveram-se nesse sentido com acentuado vigor. Salazar, apreensivo, terá dito em Conselho de Ministros que começava a notar peixinhos vermelhos a nadar na água benta. Continuava fiel ao que aprendera no seminário, defendera como membro activo da feição católica da universidade nos finais da I República, estabelecera politicamente a partir do governo. Elucidativo o episódio ocorrido quando Paulo VI veio consagrar Fátima como expoente do culto mariano. A presença em Portugal do sumo pontífice motivou um encontro, que este desejou breve. Não se entenderam sobre o tema da descolonização. Salazar, de rosto carregado, não deixou, todavia, de cumprir a obrigação protocolar de acompanhar Paulo VI ao avião, no seu regresso a partir do aeroporto de Monte Real. Mas, logo que o Papa subiu a escada de acesso ao aparelho e abençoou os numerosos fiéis, deu a cena por terminada, voltando para o carro antes de o avião descolar. Disse então ao ministro da Justiça, o devoto Antunes Varela: "Fico convencido de que este Papa não é católico." Contudo, talvez eu esteja equivocado e Salazar tenha evoluído para um crescente racionalismo, que nesse caso não apontaria para antagonismo em relação à maçonaria. Fui e sou amigo de influentes maçons do rito escocês. Todos homens de bem com os quais sempre gostei de conviver no mútuo respeito por posições diferenciadas. Contudo, nunca nenhum me quis esclarecer se eu tinha razão ao considerar falsa a ideia do papel persecutório por parte do que foi durante quarenta anos chefe do governo. Respeitei-lhes, obviamente, o silêncio próximo do secretismo. Todavia, seria importante apurar a verdade, não tanto para se ficar a conhecer melhor o político como homem, mas a própria maçonaria e sua influência, nunca interrompida, na sociedade portuguesa.
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