Orwell dos pequeninos

Inês Teotónio Pereira
Ionline, 2013-10-14

Do desporto à matemática, passando pelos divertimentos e pelos amigos, tudo no mundo dos nossos filhos tem de ser igual ao mundo dos filhos do vizinho

Quando se fala de crianças, parte-se do princípio de que elas são todas iguais. Como se o mundo das crianças fosse uma espécie de União Soviética dos pequeninos. Vai tudo para escola, têm todos de aprender as coisas ao mesmo tempo, correm, brincam, têm amigos, não gostam de sopa, viciam-se em televisão e em gomas, querem ter um cão e aos seis anos não têm os dentes da frente. É assim. E quem não é assim é diferente. É criança na mesma, mas tem lá um mas. Fazem parte do grupo das "crianças, mas?". Pois isto está mal. Tal como estava a União Soviética. As crianças, tal como as pessoas em geral, são completamente diferentes umas das outras e, pasme-se, irrepetíveis. Podem ser parecidas, podem não ter dentes aos seis anos, mas nenhuma tem nada a ver com a outra. Nem sequer os irmãos.
O que é mesmo comum a todas as crianças, o que torna o mundo delas qualquer coisa parecida com o "1984" de Orwell, é a nossa tendência para tratá-las todas como se fossem iguais e a nossa necessidade totalitária de as vigiar, controlar e disciplinar. Mas iguais, iguais, meus senhores, são os pais, que têm uma necessidade tortuosa de normalizar os filhos para se sentirem mais seguros.
Do desporto à matemática, passando pelos divertimentos e pelos amigos, tudo no mundo dos nossos filhos tem de ser igual ao mundo dos filhos do vizinho. Deve ser igual. Porque igual, em linguagem parental, quer dizer normal. A única brecha democrática que permitimos abrir é a do sucesso e da popularidade. Se o nosso rebento for melhor e mais popular que os rebentos do vizinho, melhor. Ele passa, então, a fazer parte da nomenclatura, do comité central das crianças. Em linguagem orwelliana, e na nossa maneira de ver as coisas, ele começa a andar em duas patas e devia olhar para todas as outras crianças como se todas elas fossem iguais, tal como nós, que já andamos em duas patas, olhamos.
Ora, tal como a História tem vindo a demonstrar, a coisa pode não acabar bem. Está nos livros que, mais tarde ou mais cedo, o povo revolta-se, tal como o cavalo e as galinhas se revoltaram contra os porcos no "Animal Farm".
As crianças não são iguais, tal como nós não somos iguais uns aos outros nem as galinhas são iguais aos cavalos. É básico. E, por não sermos iguais, vivemos de maneiras diferentes, com ambições diferentes, complexos diferentes, talentos diferentes, gostos diferentes, e até os nossos dentes acabam por cair em idades diferentes. Podemos ser do Benfica, mas não isso não quer dizer que sejamos todos iguais ao Jorge Jesus (ou sequer parecidos).
Cada criança, com excepção do episódio dos dentes e de outros relativos ao desenvolvimento da espécie, é diferente e irrepetível. A maioria dos rapazes gosta de futebol, tal como a maioria dos homens, mas isso não quer dizer que todos tenham uma crista à Cristiano Ronaldo. Terem coisas em comum, que fazem parte da idade, não implica que pertençam ao mesmo grupo como se fossem uma ordem profissional.
Um dos sinais reveladores desta minha teoria é existir uma coisa como o dia da criança. O dia da criança é das coisas mais redutoras e limitativas para as crianças que existem. Da mesma forma que não existe o dia do adulto, também não devia existir o dia da criança. Nós, crescidos, soubemos fazer as coisas como deve ser e encontrámos dias para cada uma das nossas facetas: dia do pai, dia do trabalhador, dia da mãe, dia dos avós, dia do agricultor, do pescador, do bombeiro e até dia da mulher. Nós não arranjámos um dia do adulto, mas sim vários dias do adulto. Por isso, proponho desde já que o dia da criança seja substituído pelo dia do filho, em consonância com os dias do pai, da mãe e dos avós. E até que se considere o dia da menina, em paralelo com o dia da mulher. É que existe, de facto, uma notória discriminação de dias.
As crianças, tal como nós, pertencem a vários grupos e têm várias dimensões, e tentar encontrar um único padrão onde as encaixar, tipo partido comunista soviético, tem qualquer coisa de paterno-estalinista. Qualquer dia, acordamos todos com as crianças na rua a derrubarem muros por esse país fora.

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