Quarenta cêntimos que simbolizam todo o fracasso de um Orçamento

Público, 18/10/2013
A reforma do Estado não seria menos dolorosa nem menos polémica do que os actuais cortes, mas faria toda a diferença
Não é muito, são apenas 40 cêntimos por mês e por família. Mas são 40 cêntimos que representam todo o mal deste Orçamento. Todo o mal de não se ter reformado o Estado. Todo o mal de ter claudicado perante a necessidade de governar não apenas em função das circunstâncias, mas conduzindo as circunstâncias.
Os 40 cêntimos são os da taxa da televisão. Os do aumento previsto para 2014. Os cêntimos que vão ajudar a continuar a pagar um dos mamutes do regime, um mamute que continuará a sorver mais de meio milhão de euros por dia. Depois do privatiza-não-privatiza que dominou a primeira metade da legislatura, tudo o que este Governo diz querer fazer com a RTP é mais do mesmo de sempre. Prometer mais independência, o que ninguém deixou nunca de prometer. Tentar uma melhor gestão, gastando menos dinheiro. E aceder aos eternos pedidos de expansão do chamado "serviço público", oferecendo-lhe mais canais em sinal aberto e mais canais no cabo, apesar da inutilidade evidente, e da crescente irrelevância, dos canais já existentes.
O episódio da RTP e da taxa que todos somos obrigados a pagar sintetiza bem o pior desta maioria. Em vez de reformar a sério, conter os custos. Em vez de libertar o Estado do que pode ser feito fora dele, tentar gerir o melhor possível, e por isso centralizando tudo o mais possível, na boa tradição napoleónica que é a da nossa administração pública. O que não deixa de ser paradoxal no "Governo mais liberal de sempre".
Não tenho muitas dúvidas que a alguns meses do final do programa da troika todos os esforços se justificam para que não tenhamos de ter um segundo resgate - e um programa cautelar, por muito que digam o contrário, é infinitamente melhor do que outro resgate e mais uns anos de troika. Por isso, nesta altura do campeonato, qualquer ministro das Finanças não deixaria de recorrer a tudo o que tiver ao seu alcance, da taxa sobre os veículos a gasóleo à revisão da tabela salarial da administração pública. Se é para rapar o tacho, rape-se o tacho o melhor possível.
Muitas das medidas do Orçamento até vão na direcção certa, inevitável: continua a ser necessário aproximar as condições remuneratórias dos funcionários públicos das condições dos trabalhadores do sector privado; é de elementar justiça aproximar também o nível das pensões da Caixa Geral de Aposentações do nível equivalente no regime geral da Segurança Social; e parecem-me igualmente justos os critérios para limitar uma pequena fracção das pensões de sobrevivência. O problema não está nestes cortes, mesmo admitindo que eles poderiam ser modulados de forma diferente - o problema está que tudo seria mais coerente e mais duradouro se tivesse por base a reforma do Estado de que todos falam para evitar dizer seja o que seja.
Vale a pena perceber por que é que a reforma do Estado se tornou num imenso embaraço para o Governo, é um tabu para a oposição e está sempre na boca dos comentadores que querem parecer profundos quando têm pouco para dizer. Vale sobretudo a pena perceber que a reforma do Estado de que realmente necessitamos não é nem cirúrgica, nem consensual, mas que nos atrasamos cada vez que a adiamos ou, sobretudo, a ignoramos.
A reforma do Estado nunca seria cirúrgica ou consensual porque exigiria questionar as funções que o Estado hoje realiza, sobretudo a forma como as realiza. Ninguém duvida, por exemplo, de que o Estado tem de continuar a garantir o acesso de todos a uma educação de qualidade. Não tem é de fazê-lo como prestador quase único e universal de serviços de educação. O mesmo se passa com a Saúde. Ou com muitos cuidados de assistência social. Mais liberdade, mais descentralização e mais responsabilização nestes diferentes sistemas resultariam num melhor serviço e em significativas poupanças para o Orçamento de Estado, como mostram as reformas realizadas nos países nórdicos, na Holanda, no Reino Unido ou na Nova Zelândia, só para citar alguns exemplos.
Infelizmente, a simples sugestão de que deve rever a forma como o Estado actua nestas áreas - as que também consomem a fatia maior do Orçamento - desperta de imediato os piores fantasmas. A esquerda fala logo de "recuo civilizacional", a direita estatista acena com a cabeça de forma cúmplice, e os poucos reformistas que sobram correm a abrigar-se das balas. Por isso, e para que não restem muitas dúvidas sobre este atavismo nacional, sugiro que perguntem ao próximo político que falar de reforma do Estado o que é que ele acha que se deve fazer na Educação e na Saúde. Vão ver como raros sairão do paradigma bem-intencionado do "gerir melhor" sem mudar nada de essencial.
Dir-me-ão: reforma do Estado também seria acabar com muitos institutos e serviços públicos inúteis. É verdade. Não posso estar mais de acordo. Gostaria, no entanto, que começassem a fazer uma lista. Ou então que fizessem meras sugestões. É que logo se descobriria como tudo neste país "é fundamental".
Acontece que, mesmo tocando em muitas rotinas instaladas, nem tudo são funções inalienáveis do Estado. Há muita coisa que poderia ser dispensada. Mas isso implicaria rever o nosso quadro legal de alto a baixo. Neste país nada se faz sem que tenha o carimbo de uma dúzia de organismos, cada um deles cioso dos seus poderes e capaz de argumentar ad nauseam em como a sua intervenção não é dispensável. Da localização dos autoclismos à temperatura das despensas, tudo é regulamentado, verificado e inspeccionado. Isso complica a vida aos cidadãos, torna impossível a actividade das empresas dinâmicas, cria o ambiente onde medra a pequena corrupção e, sobretudo, justifica a existência de uma infinidade de serviços. Libertar a nossa vida desta filigrana burocrática seria um acto de gestão merecedor de um Nobel, pois trata-se de um trabalho miúdo que contaria com a oposição de todos os que, neste país, acham que nada pode ser feito sem que o Estado, desconfiado, esteja a olhar por cima do ombro, ou então sem que o Estado, paternalista, esteja a amparar.
É lamentável o pouco que se tem feito nestes domínios. É sobretudo lamentável o pouco que disso se falou na vigência do "Governo mais liberal de sempre".
Não creio que uma reforma do Estado no sentido que indiquei nos tivesse livrado da austeridade, mesmo da austeridade do próximo OE. Um país que deixou as suas contas públicas chegar aonde chegaram, um país que deixou a sua dívida externa crescer como cresceu, é um país que se colocou nas mãos dos seus credores. E que aí estará por muitos e bons anos. Não duvido, por isso, de que o Orçamento de 2014 seria sempre um orçamento de aperto e que os "cortes" continuarão ainda nos próximos exercícios orçamentais. Basta fazer contas para saber que assim é e será. Mas lamento que a dor sofrida não tenha sido aproveitada para repensar o Estado e adaptá-lo às necessidades do século XXI. Já sabia que a extrema-esquerda seria sempre contra. Já esperava que o PS, na oposição, recaísse nos seus tiques imobilistas e anti-reformistas. Tinha esperança que o "Governo mais liberal de sempre" ao menos tentasse fazer alguma coisa, mas a discussão nem começou.
O caso da RTP e da sua taxa é, por isso, tristemente revelador. O país situacionista que entra em polvorosa cada vez que se questiona a mais pequena das funções da empresa, aceitou sem pestanejar mais esta sobrecarga fiscal. O ministro, ao aderir à cultura estatizante dominante, comprou a paz junto de alguns dos mais vociferantes lobbies. Pelo que tudo acabou da forma o mais salomónica possível: metade do corte nos custos previsto para 2014 é compensado pela taxa. Só que, ao contrário da fábula de Salomão, ninguém salva a criança no fim.

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