O último teste

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2012-09-03

Vivemos actualmente um dos momentos mais decisivos da nossa vida democrática. Se conseguir passar o teste, Portugal poderá finalmente graduar-se como democracia sólida e actual. É espantoso que, envolvidos em enredos e tricas passageiros, as grandes referências da política nacional não estejam a dar-se conta desse significado.
A vida política do nosso país tem passado por épocas tristes e numerosos percalços. Em particular, no que toca ao regime democrático, a experiência foi perturbadora. As revoluções de 1820, 1834 e 1910 geraram catástrofes nacionais de gravidade crescente. As únicas experiências estáveis desse sistema, o Liberalismo regenerador e rotativista da segunda metade do século XIX e a Nova República Velha dos anos 1920, afundaram-se num marasmo de clientelismo, fraude, corrupção, caciquismo e inoperância. Até 1974 todas as tentativas tinham tido resultados péssimos. A única conclusão sensata seria dizer que o nosso povo não consegue viver em democracia.
Hoje podemos afirmar que Portugal passou o teste. O regime de Abril conseguiu aquilo que os séculos anteriores tinham falhado. Temos um regime político sólido, aberto e estável, que presidiu a mais de três décadas de progresso. Somos um país respeitado no exterior, membro activo dos melhores clubes internacionais. Apesar da recessão, dívida, queixas, suspeitas e até crimes e abusos, não estão em risco os pilares fundamentais da nossa liberdade e progresso. Passámos por crises fortes e graves dificuldades, como todas as nações do mundo, mas nunca voltámos aos pesadelos de caos ou podridão que assolaram décadas antigas, e que hoje vemos em alguns dos parceiros. Somos um país desenvolvido, sólido e dinâmico.
Conseguir este resultado não foi fácil e exigiu conquistas a vários níveis. Primeiro no campo cultural, onde se teve de expulsar os demónios da ignorância, tacanhez, extremismo e intolerância. Depois na estrutura social, vencendo antigas barreiras e preconceitos que nos dividiam. Em terceiro lugar houve conquistas decisivas a nível político, ultrapassando velhas quezílias, como as lutas entre absolutistas e liberais e entre monárquicos e republicanos, que ensanguentaram o País por mais de um século. Finalmente na área económica foi encontrado um equilíbrio que permitia a liberdade de iniciativa promovendo os direitos sociais básicos.
Em todos estes campos as vitórias nunca são definitivas e cada geração tem sempre de reajustar a situação. De qualquer modo o nosso regime já mostrou que consegue resistir e funcionar razoavelmente. Nos quase 40 anos desde a revolução dos cravos somos um país normal e sereno. Só falta passar um quinto teste.
Uma das principais razões dos nossos anteriores fiascos democráticos esteve no campo financeiro. Nunca tivemos até hoje democracia com controlo das contas públicas: nem na Monarquia, nem na Primeira República, nem desde 1974. Com ditadura conseguimos orçamento equilibrado, como mostraram João Franco e António Salazar, mas na democracia ainda não.
É verdade que, também neste campo, o actual regime conseguiu resultados melhores que os anteriores. Temos sido poupados aos horrores do descalabro financeiro, sentidos sobretudo nos anos de falência externa: 1837-1841, 1845, 1852-1856 e 1890-1901. Não estamos como a Argentina ou a Grécia. Apesar disso a fragilidade é evidente. Por três vezes recorremos ao apoio internacional em situação desesperada, 1978, 1983 e 2011, e nos períodos intermédios repetidamente o Orçamento do Estado se tornou o tema político central, como fora nas anteriores épocas democráticas.
Por isso o momento actual é tão decisivo. Se, sob o programa da troika, Portugal fizer as reformas que coloquem o orçamento numa trajectória sustentável, teremos vencido o último, e em certo sentido o mais perigoso, demónio da nossa vida democrática. Não será fácil nem garantido, mas é esse o desafio central deste ano político. Estranho que ninguém pareça dar por isso. Pelo contrário, vários líderes assumem-se como agentes desse mal.

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