Saiu-nos caríssimo o preço do que não tinha preço

Público 2011-09-22 Helena Matos
Proponho que tudo passe a ter um preço para que se perceba que o gratuito não existe e que os governos não dão nada

A saúde não tinha preço. A educação não tinha preço. A solidariedade não tinha preço. A grande obra não tinha preço. Vivemos décadas num mundo em que nada tinha preço. Tudo nos era devido porque se inscrevia numa cartilha de adquiridos em que mal nascíamos tínhamos direito não apenas a viver numa sociedade regida por princípios de tolerância e liberdade mas também e sobretudo por proporcionar regalias materiais que passaram a incluir coisas tão variadas quanto os túneis da Madeira, os livros escolares gratuitos ou um serviço público de televisão.
Parecia que só por perfídia desde o princípio da nacionalidade não existia o Rendimento Social de Inserção nem a possibilidade de o acumular com o abono de família, o abono pré-natal e o subsídio de renda de casa e assim obter um rendimento que consideram sempre baixo mas que em vários casos é superior ao que se aufere trabalhando. Paulatinamente Portugal encheu-se de pais que, segundo eles mesmos afirmam, lançaram as bases de todo este universo dos direitos crescentes e gratuitos: é Arnaut enquanto pai do SNS; Guterres, o pai do RSI e Jorge Miranda, pai da Constituição. Graças aos céus o ensino público gratuito ficou órfão desta paternidade que corre por conta das carteiras alheias porque a bem da verdade teríamos de remontar ao marcelismo, coisa assaz inconveniente para uma democracia que valoriza mais a gratuitidade do que a liberdade e a transparência.
Agora todos os dias nos chegam as facturas do que não tinha preço - só o Serviço Nacional de Saúde (SNS) custou, em 2010, mais de 25 milhões de euros por dia - e de repente interrogamo-nos se alguma vez seremos capazes de pagar o preço do que não tinha preço e que durante décadas nos garantiram que os governos davam. Contudo os efeitos mais nefastos desta alienação não são, de modo algum, essas contas astronomicamente negativas que contabilizam tudo aquilo que os nossos governos "nos deram".
Em primeiro lugar temos um problema político: os líderes políticos da democracia construíram a sua legitimidade e habituaram-se a ganhar eleições com base no alargamento desse universo dos direitos materiais. Sócrates derrotou Manuela Ferreira Leite em 2009 pela mesma razão que Alberto João Jardim vai muito provavelmente ganhar as eleições em 2011: ambos vendem a ilusão de um mundo em que os custos não existem e a obra pública e os apoios sociais resultam apenas daquele ímpeto pessoal que os faz escrever o seu nome num decreto que dá mais isto e mais aquilo. Enquanto conseguirem manter em movimento a girândola do governo que dá, do homem que faz obra e da vida para lá da dívida, estes líderes são quase imbatíveis. Sócrates caiu porque no meio do frenesi de lançamento de auto-estradas, TGV e Novas Oportunidades ficou, um dia, só e subitamente patético diante do teleponto a ensaiar o anúncio do pedido de ajuda externa. Jardim talvez ainda consiga manter a ficção de modo a ganhar as eleições, pois a Madeira é uma ilha, o discurso do anticolonialismo rende muito e os adversários têm medo de dizer que os governos, mesmos os regionais, não dão nada.
Mas o segundo (e na minha opinião muito mais grave) problema desta forma não de governar mas sim de ganhar eleições é moral: o gratuito que não tem custo e os direitos materiais crescentes fizeram de cada cidadão/beneficiário um potencial prevaricador, uma espécie de pedinte insatisfeito que procura retirar todos as vantagens possíveis desse universo do gratuito: são os velhos inevitavelmente com baixas pensões, mas que atempadamente transferiram as suas poupanças para as contas dos filhos, sobrinhos e netos, de modo a pagarem o mínimo nos lares comparticipados pela segurança social.
São os usufrutuários da habitação social que acham que não podem pagar uma renda cujo valor é muito frequentemente inferior àquilo que pagam de telemóvel. É Portugal de todas as classes que vai de carro para todo o lado mas depois acha natural que o Estado lhe pague as deslocações para fazer tratamentos médicos. São as famílias que dizem que não podem pagar as refeições nas cantinas escolares e depois mandam os filhos para as escolas com roupas caríssimas e ténis de marca. (Claro que levar lanche de casa é algo absolutamente impensável para quem nasceu nos tempos dos direitos crescentes e sem custo!)
São os usufrutuários do SNS que dizem que não podem suportar as taxas moderadoras mas que não prescindem do pequeno-almoço no café. São aqueles milhares e milhares de pessoas gozando de boa saúde e que vêem na baixa uma espécie de direito ao descanso... A lista é mais ou menos interminável e ainda acrescento que em muitos casos não será assim que as coisas se passam. Mas valha a verdade que acho que será assim cada vez mais, pois não só a necessidade aguça o engenho como todos nós ouvimos dizer durante anos que tudo isto não só era um direito mas também gratuito. Não existe censura moral para este tipo de comportamentos e sem essa censura moral não há mecanismos de controlo que resultem, pese esses mecanismos estarem a transformar o Estado Social num estado policial. O NIF é já mais importante que o BI, meio país anda com declarações várias na carteira para provar que tem direito ao passe mais barato, aos manuais escolares gratuitos, à isenção das taxas moderadoras, à energia comparticipada...
Durante décadas os estados afadigaram-se em saber o que pensávamos. Agora aplicam o mesmo zelo para esquadrinhar o que temos e sobretudo o que não temos, pois, provando-se o que não se tem, consegue-se ainda passar pela porta cada vez mais estreita que dá acesso ao outrora reino universal do faz de conta, aquele em que os governos dão serviços e as obras não têm preço. Por fim, e para prevenção de tentações futuras, proponho que tudo passe a ter um preço: dos hospitais às escolas, dos transportes públicos aos espectáculos subsidiados, da habitação social às refeições nas cantinas escolares, o valor real deve constar dos respectivos recibos. Poucos o pagarão na totalidade, mas deve estar lá. Para que se comece a perceber que o gratuito não existe, que os governos não dão nada, que o dinheiro de todos nós deve ser aplicado para ajudar quem precisa enquanto precisa - e como todos nós usufruímos sempre de alguns destes serviços temos todos a obrigação de estarmos mutuamente agradecidos a quem nos ajudou - e não para fazer engenharias sociais. Ensaísta

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António