Contra factos

Público 2011-09-22 Pedro Lomba

E. H. Carr descreveu uma vez a História contrafactual como um "jogo de salão", sem nenhum préstimo que não fosse o entretenimento. Historiadores mais recentes e politicamente opostos, como o britânico Niall Ferguson, vêem no género algo mais sério do que um simples passatempo literário. Eles destacam a importância de certos factos capitais para demonstrar como a História depende de escolhas, escolhas tomadas por actores concretos em momentos concretos, e como os caminhos que a História não seguiu eram, afinal, plausíveis e acessíveis. Existe um debate longo sobre o tema, porventura de interesse só para historiadores e outros curiosos. Deixemos isso para outras núpcias.

Os meus propósitos são diferentes. Como toda a gente, suponho, não consigo garantir que, se o avô de Espinosa não tivesse sido expulso com os judeus de Portugal, ele teria sido apenas português (e já não Espinosa). Como não consigo dizer que, caso D. João VI tivesse permanecido em Portugal aquando das invasões francesas, esse contrafacto teria retardado por muito tempo - por quanto? - a independência do Brasil. Possivelmente sim. Não efabulo sobre o que teria acontecido à Europa se Gavrilo Prinzip tivesse falhado o alvo em 1914 no disparo mortal contra o arquiduque Francisco Fernando. Sob a imensa profusão de "ses" da História esconde-se sempre uma maioria de contrafactos impossíveis, imaginosos ou inúteis.

De qualquer maneira, podemos sempre perguntar se não existiram factos na nossa História recente que contribuíram para que chegássemos aqui; e se não existiam outros contrafactos que poderiam ter ditado outro destino. Não só podemos perguntar, como devemos fazê-lo. Nisso consiste o essencial da reflexão política: a capacidade de aprendizagem sobre as escolhas que foram feitas e sobre as suas alternativas. Tantas vezes nos venderam a certeza de que essas alternativas não existiam. A História foi-nos apresentada como uma folha limpa pelos seus vencedores. Ninguém se responsabilizou por nada, porque, disseram eles, fizeram só o que podia ser feito, uma espécie de representação ex machina do motor histórico.

Em 74 e 75, foi o PREC, sem o qual não teríamos tido uma chusma de nacionalizações que paralisaram a economia, uma administração ocupada e a Constituição, que, durante mais de dez anos, nos impediu de ambientar um país às regras de uma economia de mercado. Foram os anos 80 e 90, durante os quais, se tivéssemos pensado com modéstia que um país pobre primeiro faz por trabalhar para os outros antes de se atribuir a si próprio um curso, uma casa e um cartão de crédito - não foi essa a receita que os nossos emigrantes usaram para mudar de vida? - podíamos ter sido para a Europa aquilo que os países asiáticos são para hoje para o resto do mundo: um espaço de trabalho e produção mais barata. Teria custado? Sem dúvida. Talvez os portugueses não quisessem, é verdade. Contudo, alguém tentou realmente este caminho?

E agora a ilusão extinguiu-se e a fatalidade impôs-se. A impressão de que vivemos cada vez mais num país que deixou de saber para onde ir, que deixou de poder viver além dos seus meios - embora se recuse também a aceitar essa dura evidência -, significa que estamos cada vez mais condenados a fazer a nossa própria História contrafactual, a revisão do tempo perdido, o inventário dos factos e contrafactos que tragam alguma confiança para os 20 tormentosos anos de austeridade que o FMI nos promete. Sem essa prestação de contas com a História, não sairemos deste estado de excepção que tudo justifica sem critério e que retirou ao país dignidade e independência. Jurista

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