Os irlandeses falaram por todos nós

PÚBLICO
18.06.2008, Jorge Miranda


O voto irlandês é a recusa do modelo de construção apenas a partir de Bruxelas e de acordos entre os grandes

Os Governos dos Estados-membros da União Europeia resolveram evitar a realização de referendos acerca do Tratado de Lisboa, mesmo em países onde eles se impunham por causa dos resultados negativos de anteriores referendos (como a França, a Holanda, a Dinamarca), de exigências da opinião pública (como a Grã-Bretanha) ou de promessas eleitorais (como Portugal).Só não puderam ultrapassar a Constituição da Irlanda e, por isso, aí teve de haver referendo, que pensaram que seria uma mera formalidade.Não viria a ser, porém, uma formalidade. O povo irlandês soube assumir a sua soberania e votou "não", provocando logo as mais espantosas reacções de alguns dirigentes, chegando a afirmar-se que 3 milhões de irlandeses não poderiam parar 450 milhões de europeus! (quando o próprio Tratado, como os anteriores, faz depender a sua entrada em vigor da vinculação de todos os Estados). Ou que o problema era com o Governo de Dublin, convidado a repetir o referendo para se alcançar um "sim"!Ora, independentemente de se concordar ou não com o Tratado de Lisboa (que, aliás, cada vez mais se vê ser uma cópia, salvo em certas formulações, da "Constituição"), o grande significado do voto irlandês é a recusa do modelo de construção apenas a partir de Bruxelas e de acordos entre os grandes (não tenhamos ilusões, não foi a presidência portuguesa que tudo preparou, foi a alemã). É a recusa de uma construção imposta de cima para baixo. E é, especialmente, a recusa do compromisso espúrio que levou à não realização de referendo noutros países. Não se trata, claro está, de pôr em causa a legitimidade dos procedimentos parlamentares de aprovação dos tratados europeus. Bem pelo contrário: os Parlamentos nacionais deveriam ter uma participação muito mais extensa e intensa do que têm tido nas decisões conducentes a novos passos de integração. Deveriam ter tido antes e não depois. (Assim como falta, nas instituições da União Europeia, uma espécie de segunda câmara com representação paritária de todos os Estados através dos respectivos Parlamentos.)Do que se trata é de os cidadãos serem chamados também eles a intervir por vias adequadas e eficazes, entre as quais os debates referendários. E do que se trata é de, para tanto, se fazerem tratados simples, claros, bem elucidativos daquilo que continua a pertencer ao domínio dos Estados-membros e daquilo que, sem prejuízo do princípio da subsidiariedade, é atribuído à União - em vez de tratados longuíssimos e complexos que nem os governantes lêem ou leram (como confessou o primeiro-ministro da Irlanda).No caso português, até agora, os dois partidos maioritários têm fugido ao referendo. Foi assim em 1992 com Maastricht (embora na altura a Constituição não o permitisse). Foi assim com o Tratado de Amesterdão e com o Tratado chamado Constituição (pois, se tivessem querido, bem poderiam ter ajustado as perguntas referendárias às pronúncias do Tribunal Constitucional). E foi este ano, apesar de na revisão de 2005 se ter aditado à Constituição uma norma específica, o artigo 295.º, o qual, se não obriga, pelo menos pressupõe a realização de um referendo sobre o novo tratado europeu.No caso português ainda, as reacções dos grandes ao voto da Irlanda deviam também levar a pensar sobre o nosso estatuto dentro da Europa. Mesmo que o Presidente da República e o Governo achem que o Tratado de Lisboa o acautela devidamente (o que é duvidoso, em face, por exemplo, do desaparecimento das presidências rotativas que eram expressão de igualdade dos Estados), não deveriam fazer declarações precipitadas que, de algum modo, diminuíssem o direito dos pequenos (e, para este efeito, Portugal é pequeno) de livre aceitação dos instrumentos constitutivos da União, tal como decorre (insisto) dos termos do Tratado.Não discuto aqui a necessidade ou a conveniência de um tratado que substitua o Tratado de Nice. O que pretendo é que qualquer tratado seja coerente com uma ideia de Europa de Estados iguais e de uma Europa dos cidadãos. Constitucionalista

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