Algumas coisas que fazem a nossa identidade, JMFernandes, Publico, 080610

Em nenhum outro país europeu coincidiu, no mesmo território e ao longo de tantos séculos, um mesmo povo, como uma mesma língua e uma mesma religião. Para o bem e para o mal

Os investigadores que o PÚBLICO consultou sobre os resultados de um inquérito sobre a nossa identidade nacional disseram ter ficado surpreendidos com o elevado número de portugueses que associa a sua nacionalidade ao catolicismo. E procuraram encontrar uma explicação política para isso, naturalmente associada ao Estado Novo.
Acontece porém que se consultarmos o resto do longo inquérito verificamos que os portugueses estão entre os povos do mundo onde o domínio de uma só religião é mais forte (entre os católicos, praticamente só somos superados, se conjugarmos os dados referentes ao que se afirma ser e ao que se diz praticar, pela Polónia, pela Irlanda e pelas Filipinas). Ora essa posição de Portugal é tão ou mais importante quanto é verdade que a religião é, nesses três países, um elemento que os distingue dos seus vizinhos (a Irlanda católica afirmou-se contra o anglicanismo do Reino Unido, a Polónia sobreviveu \u201Centalada\u201D entre prussianos protestantes e eslavos ortodoxos e as Filipinas vivem paredes meias com a islâmica Indonésia), ao passo que a nossa separação de Espanha nunca se fez de acordo com linhas de clivagem religiosas.
O catolicismo nacional, que resistiu ao liberalismo do século XIX e ao republicanismo jacobino do século XX, é um fenómeno que não pode ser explicado apenas por efeito de um regime que durou meio século. Ou então há muito que Fátima teria deixado de ser o fenómeno de multidões que continua a ser.
Esta realidade deve ser entendida no quadro de uma afirmação nacional antiga, como quase nove séculos, e que é absolutamente única na Europa. Nenhum outro país possui, como Portugal, praticamente as mesmas fronteiras há 800 anos, com a possível excepção da Suíça. Só que enquanto na Suíça convivem várias línguas e religiões, em Portugal isso não acontece pelo menos desde o século XVI, quando a importante e influente comunidade judia foi forçada a fugir ou a converter-se. Com excepção das incursões dos exércitos franceses e de mais algumas escaramuças, nunca fomos ocupados (é bom não esquecer que a dinastia filipina correspondeu à união de duas coroas e que Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal, instalou por muitos anos a sua corte em Lisboa).
Não há nada de semelhante na Europa. Países como a Alemanha ou a Itália são criações do século XIX. A Noruega, a Finlândia, os países bálticos e alguns países da Europa central praticamente nunca foram independentes até ao século XIX ou mesmo ao século XX. Estados como o Reino Unido ou a Espanha são plurinacionais, outros, como a Polónia, raras vezes possuíram fronteiras estáveis e eram corredor de passagem de todos os exércitos. Isto para não falar dos que são hoje uma sombra do que foram, como a Áustria ou a Hungria.
No fundo, a coincidência num mesmo território e ao longo de tantos séculos de um povo, uma língua e uma religião é uma especificidade portuguesa. Para o melhor e para o pior, razão pela qual encontrar Portugal entre os países onde mais se associa à nacionalidade ter nascido no país, ter antepassados portugueses, falar português e praticar (mesmo que cada vez menos) uma mesma religião é uma decorrência da História, não o legado de um regime ou do que se ensina nas escolas. Um legado que nos afasta da Europa, cujos povos conheceram atribulações bem diversas e só se arrumaram em Estados-nação na sequência de três guerras trágicas (as de 1914/18, 1939/45 e, mais recentemente, dos Balcãs). A nossa dificuldade em compreender muitos dos conflitos continentais é não só uma consequência do nosso afastamento geográfico, como da circunstância de, mesmo limitando-nos à nossa experiência histórica na Europa, sem incluir a expansão imperial, esta ser imensamente distinta da dos outros povos europeus.
Por isso, quando se procura explicar o porquê do nosso atraso, uma parte dele deriva de a nossa estabilidade e homogeneidade nunca terem criado as condições que levaram muitos outros países a apostarem, desde muito cedo, no ensino da língua oficial através de uma rede de escolas públicas. Nesses países a afirmação dos novos poderes tinha de passar pela diferenciação linguística, e a centralização do poder pela literacia dos cidadãos. Portugal, onde os reis nunca tiveram de se afirmar contra senhores feudais poderosos e onde todos falavam a mesma língua há muitos séculos, esse papel unificador e integrador que a escola pública teve em inúmeros países europeus pôde ser desleixado. Foi assim que entrámos no século XX como o povo europeu onde era maior a taxa de analfabetismo e no século XXI como aquele onde era maior a taxa de abandono escolar.
A nossa velha identidade também teve custos, e pesados.

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