Betinho, cocó e careta

Betinho, cocó e careta
PÙBLICO 16.05.2008, José Miguel Júdice

Os factos são simples. O Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) elaborou ou mandou elaborar um Dicionário do Calão, que também está disponível num site com o sugestivo (e premonitório?) nome tu-alinhas.pt que o IDT direcciona para crianças com mais de 11 anos. Recordo que as principais missões do IDT são "planear, coordenar, executar e promover a avaliação de programas de prevenção, de tratamento, de redução de riscos, de minimização de danos e de reinserção social" e "apoiar acções para potenciar a dissuasão dos consumos de substâncias psicoactivas".

Entre as mencionadas missões não consta, portanto, a edição e divulgação de dicionários.
Segundo a opinião de uma confederação de pais, o citado dicionário transmite uma "imagem convidativa das drogas". As citações de algumas definições convencem-me: se há exagero nessa opinião é no sentido de ser demasiado moderada para o que constitui um inconcebível escândalo e uma intolerável utilização de dinheiros públicos para fins não apenas estranhos, mas opostos aos que competem ao IDT.
Querem exemplos? Vejam (e cito do Diário de Notícias): "curtir - sentir o prazer da droga"; "queimar - é aquecer com o isqueiro a heroína ou a cocaína, até fazer a bolha brilhante, cativante e vaporosa..."; "betinho, cocó ou careta - é aquele que não consome droga e, por isso, é considerado conservador, desprezível e desinteressante".
Perante isto o presidente do tal IDT terá informado que este disparate foi feito com a colaboração do Ministério da Educação (!), que "tem alguma utilidade" (!!), que serve para os jovens não ficarem mal informados (!!!) e para não se sentirem menorizados por não saberem afinal o que significam estes termos (!!!!).
Convém clarificar que sou favorável à alteração do regime legal do consumo e da venda de drogas. Acho que as drogas deveriam ser legalizadas, regulamentadas, taxadas. Considero que os que caem sob a influência de drogas devem ser tratados em termos de saúde pública e não como criminosos. Não estigmatizo nem nunca estigmatizarei os que se drogam e entendo que todos temos o dever cívico de contribuir para diminuir este flagelo. Por exemplo, sou favorável a programas de troca de seringas nas cadeias.
Perceber-se-á, portanto, que a minha reacção não se baseia em preconceitos ideológicos ou em tentativa de aproveitamento destes factos para finalidades políticas conducentes ao reforço da penalização do consumo de drogas.
Estou profundamente chocado, apesar da minha idade já me ter tornado numa pessoa que começa a não se espantar com muita coisa. O relativismo em que vivemos e a tendência para cada notícia destruir a anterior fez com que este assunto passasse quase sem comentários. Em minha opinião, o que se passa com este tipo de acção do IDT é, mal comparado, o que se passa por vezes com antropólogos que se dedicam a estudar povos primitivos e que, parafraseando Camões, se transformam de "amador em coisa amada". Realmente, muitas vezes apaixonam-se de tal modo pelo objecto de investigação que perdem o distanciamento e o espírito científico, convencendo-se de que os sistemas sociais e os modos de vida desses povos são um exemplo de perfeição que se pode comparar com vantagem com as sociedades contemporâneas.
Quero acreditar que o dr. João Goulão, que preside à instituição, não é favorável à promoção do consumo de drogas por jovens a partir dos 11 anos. Quero mesmo acreditar que não é intelectualmente destituído nem padece de incapacidade profunda de discernir a realidade. Chego ao ponto de admitir que as declarações esfarrapadas e insensatas com que nos brindam os media não foram feitas por ele ou, tendo-o sido, não se destinavam a gozar connosco.
Por isso, para mim do que se trata é de uma tentativa que faz lembrar aqueles pais que julgam que educam os filhos se optarem por infantilizar os seus comportamentos como se tivesse dez anos, e tentam ser "porreiros", "compinchas", "cool". Com isso perdem o sentido da distância e não percebem que os nossos filhos menores não precisam que os pais sejam cúmplices nos criancices, mas da certeza de que se precisarem de ajuda os pais não falham, porque estão atentos, tentam evitar os erros dos jovens e alertá-los para os riscos.
O dr. Goulão, no fundo, parece querer ser "um gajo porreiro", um verdadeiro "mano", "estar na onda", pois "está-se bem", "méquié", "tudo em altas", pois está-se a "flipar". Acho que aspira mesmo a ser um "granda boss". E que não ousem espantar-se com ele e dizer "kecenameu". O presidente do IDT pensa que, se os dependentes da droga o olharem como uma espécie de pai vivaço, porreiraço, modernaço, a sua missão será mais fácil. Não é; o efeito será precisamente o oposto.
As coisas são o que são. Por muito menos do que isto, responsáveis políticos se demitem por esse mundo fora. Com muito menos responsabilidade, pelas mortes em Entre-os-Rios, demitiu-se o ministro Jorge Coelho.
Por tudo isto arrisco ser estigmatizado na próxima edição do já célebre dicionário. Acho que é imperdoável o que o IDT fez, que a culpa não pode morrer solteira e que o dr. Goulão deve ser mandado para a vida privada para fazer os dicionários que quiser, mas não com o dinheiro dos meus impostos.
O IDT e os insensatos que fizeram este dicionário consideram-me seguramente conservador, desprezível e desinteressante. Paciência. É isso que pensa este betinho, cocó e careta.

Advogado

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