Reflexão

Público 2011-06-04  Vasco Pulido Valente

Como o que estou a escrever hoje, sexta-feira, irá ser publicado amanhã, sábado, não posso escrever uma palavra sobre eleições para não perturbar ou, pior ainda, influenciar a profunda reflexão a que presumivelmente se irão recolher os portugueses na véspera de votar. Isto é imposto por uma lei, que na altura em que foi feita já não se distinguia pela sua particular inteligência e utilidade. Mas, como de costume, ninguém pensou em a revogar e hoje ela continua a reger, em toda a sua radiante estupidez, a nossa pobre vida. Mesmo a existência da Net, que a torna manifestamente obsoleta, não conseguiu comover a Assembleia da República e Portugal inteiro a continua a cumprir (com certeza por medo da polícia) com um zelo abstruso. Até o Expresso saiu com um dia de antecedência para não agitar a populaça com qualquer sondagem ou comentário perigoso.
Infelizmente, para reflectir é preciso matéria de reflexão, porque o Estado não nos quer a reflectir sobre Kant, sobre Hegel ou sobre a segunda lei da termodinâmica. Nem, sendo laico, pluralista e modernizador, nos gostaria de ver em oração na igreja da paróquia, sob a vigilância de um padre duvidoso. De maneira nenhuma. O Estado, consciente das suas responsabilidades, deseja que o eleitorado se sente numa cadeira (com a televisão fechada) a pensar e a consultar documentos para decidir com a maior concentração e rigor em quem vai votar. A consulta a um parente ou um amigo é permitida (talvez porque seja difícil de impedir) e também um telefonema ou outro. De qualquer maneira, o ideal era uma conversa solitária e grave com o espírito da pátria e as dores do presente.
Lágrimas não se admitem, excepto no beatífico momento em que a escolha certa surgir do nevoeiro mental em que por aí andamos. Cada entrevista, cada artigo, cada programa tomará então o seu verdadeiro peso e lembraremos com a melancolia do sábio as procissões dos partidos por esta nossa acolhedora terra e sound-bytes das vendedoras de hortaliça dos nossos presuntivos chefes. Verdade que o caminho foi longo, e mais do que longo, cansativo, mas sempre acabámos por chegar. No domingo, reconfortados pelo exercício intelectual da véspera, avançaremos para deitar o papelinho com a tranquilidade dos justos. Só em Portugal se inventaria um processo tão simples para garantir um governo perfeito. Como a história da democracia, de resto, tem provado.

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