Democracia e contas públicas

Público 2011-05-16  João Carlos Espada
É possível ganhar eleições democráticas com programas de controlo da despesa pública e de redução dos impostos

Pode a democracia ser compatível com o controlo da despesa do Estado e das finanças públicas? Esta é uma pergunta interessante que tem sido sugerida entre nós a propósito do recente pedido de ajuda internacional.
Para suportar a pergunta, os seus autores citam evidência empírica: desde o 25 de Abril, o FMI já foi chamado três vezes; a I República enfrentou igualmente a bancarrota financeira, o mesmo tendo acontecido, no final do século XIX, com a Monarquia constitucional. Em contrapartida, o dr. Salazar e o seu Estado Novo conseguiram restabelecer e preservar o equilíbrio das contas públicas. Não seria isto suficiente para mostrar que a democracia não consegue viver com contas públicas equilibradas?
De acordo com esta perspectiva, o aumento da despesa pública seria uma causa sempre eleitoralmente popular. Por isso, não seria possível a um partido ganhar eleições com um programa de rigor orçamental. Por outras palavras, a democracia estaria necessariamente associada ao despesismo estatal.
Por mais atractivo que possa parecer, este argumento tem dificuldades. É verdade que as democracias no século XX tenderam sempre a fazer crescer a despesa pública, até à década de 1980. Mas isso também é verdade acerca do nazismo alemão, do fascismo italiano e do comunismo soviético. Por outras palavras, a democracia não pode ser, só por si, a variável explicativa do crescimento da despesa pública.
Por outro lado, e mais importante, a trajectória de crescimento dos défices públicos foi travada na década de 1980, em democracia, por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Isso foi feito com base num forte movimento popular reclamando redução dos impostos e redução do poder do Estado - e não em nome de uma redução da democracia. Essa orientação foi em grande parte mantida pelo Presidente Clinton, líder dos "New Democrats", que aliás conseguiu reequilibrar o orçamento.
Em Novembro passado, nos EUA, o Partido Republicano alcançou uma vitória eleitoral histórica - muito pouco estudada entre nós - com base num programa de redução do Estado, da despesa pública e dos impostos. Um programa semelhante esteve na base da recente vitória do partido conservador no Canadá, também considerada histórica por muitos observadores, e também muito pouco discutida entre nós.
Por outras palavras, é possível ganhar eleições democráticas com programas de controlo da despesa pública e de redução dos impostos. A (ou as) variável explicativa tem por isso de ser procurada noutro factor que não a simples existência ou não de democracia.
Uma hipótese relativamente simples reside na cultura política. Se, em democracia, a cultura política dominante vê a despesa pública e a intervenção do Estado na economia como desejável ou normal, não é realmente de esperar que a causa do equilíbrio financeiro possa ser muito popular. Se, por outras palavras, uma cultura política tem como inimigo público principal e comum o chamado "neoliberalismo", ou o chamado "capitalismo", não é de prever que o despesismo estatal possa ser percepcionado publicamente como um mal a evitar.
Outra hipótese, associada à anterior, reside na debilidade das lideranças políticas e cívicas. Se não há líderes partidários e de instituições civis que mostrem persistentemente os efeitos negativos da despesa pública, não é de esperar que os eleitores possam premiar quem defende a disciplina orçamental.
Por outro lado ainda, se essas vozes existem na sociedade civil, mas não conseguem ascender às estruturas partidárias dominantes, seria caso para indagar da real permeabilidade dos partidos políticos e do sistema eleitoral às vozes da sociedade civil. E seria ainda de investigar a possível existência de barreiras legais e fiscais ao florescimento de entidades independentes de reflexão e intervenção pública, vulgo think-tanks.
Por outras palavras, antes de culparmos a democracia pelo despesismo governamental, talvez fosse melhor começarmos por ser mais exigentes com os democratas. Diz o ditado que não há democracia sem democratas. É caso para dizer que não há disciplina financeira sem defensores da disciplina financeira.
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia

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