Estado nosso

Público, 2010-09-16  Helena Matos

O Estado social que temos é insustentável, injusto, mas politicamente tornou-se inesgotável para quem o controla

"Eu trabalho a recibos verdes. Tu sabes o que isso é?" - a pergunta veio do lado de lá do telefone. E era a melhor resposta às minhas ignorantes perguntas sobre o que a pessoa em causa ia receber a título de indemnização, agora que lhe fora anunciado não que ia ser despedida mas sim que a sua colaboração tinha terminado. Para ser despedido é necessário ser trabalhador. E na sua geração os trabalhadores deram lugar aos colaboradores.

Neste mesmo dia o país mostrava-se irritado à direita e ofendido à esquerda com a proposta de revisão constitucional apresentada pelo PSD. Em causa, dizem, está o Estado social. Esse Estado que a pessoa com quem falava ao telefone não conhece nem vai conhecer. Porque a sua geração, aquela que agora tem entre 25 e 30 anos, vai ter de pagar o Estado dito social mas na verdade garantista que a geração dos seus avós começou a construir nos anos 70 do século passado e que agora compromete a vida dos netos. O problema para esta geração não é ser despedida com justa causa ou por razão atendível (e não cabe certamente a uma Constituição detalhar esta matéria), mas sim não ser contratada. Esta geração já sabe que o tendencialmente gratuito na saúde implica pagar um seguro de saúde que pelos menos cubra os exames que só se fazem na data necessária se for "particular". Não ignora que deve fazer um PPR ou meter dinheiro debaixo do colchão que cubra o défice do sistema público de pensões e aprendeu à sua custa que as escolas públicas, apesar de saírem bem mais caras que os colégios privados, são aquele sítio que os políticos dizem maravilhoso para ser frequentado pelos filhos dos outros.

Com revisão constitucional ou sem ela, estamos a assistir ao fim desta vida dupla que nos habituámos a levar entre o serviço público gratuito constitucionalmente inscrito e a realidade onde o serviço público nos serve cada vez menos, pois a maior parte dos seus orçamentos são absorvidos pelas despesas de funcionamento. E este Estado está a acabar pela prosaica razão de que não há dinheiro. Por mais que se revirem os escalões do IRS, que se grite contra os ricos que podem fazer a fortuna das lojas de luxo mas que não são suficientes para garantir o pagamento de crise alguma e se reivindique o vale-tudo fiscal, não há dinheiro que chegue para sustentar o delírio despesista que se construiu em nome da igualdade, do Estado social e do gratuito. Pior ainda, do ponto de vista fiscal só se conseguem verbas significativas aumentando a pressão fiscal sobre aqueles a que pomposamente chamamos classe média, mas que na verdade são pessoas com vencimentos baixos ou médios e que mais do que serem classe média têm aspiração a sê-lo. Donde o Estado social ser hoje profundamente injusto do ponto de vista social - não só 15% da população paga 85% dos impostos como esses 15% não são ricos - como representa uma espécie de traição geracional: as gerações que estão no poder começaram por pactuar com o endividamento e agora agarram-se a garantismos e regalias de que sabem que as próximas gerações não poderão usufruir mas terão de pagar. O nosso gratuito de hoje é um cartão de crédito que descontará nas contas dos nossos filhos e dos nossos netos. A seu jeito Raúl Castro percebeu que o gratuito sai caro e que alguém tem de o pagar. Como a URSS desapareceu e de Angola não vieram as verbas esperadas, já não havia mais ninguém para sustentar o gratuito cubano. A salvação pode vir agora do despedimente deste meio milhão de funcionários públicos. Não tanto pelo que se poupa nos seus vencimentos, mas sim porque eles terão de se atirar para o nefando e desigual sector privado onde, espera-se em Cuba, obterão os lucros suficientes que se traduzirão nos impostos indispensáveis à manutenção do gratuito inscrito para a eternidade na Constituição cubana. O socialismo pode escrever-se por linhas ideologicamente tortas, desde que alguém o sustente.

Mas a questão está longe de se esgotar na sustentabilidade deste sistema. Politicamente, ele é um problema ainda maior. Quem se senta na cadeira do poder deste Estado social e lhe domina a linguagem tem ao seu dispor uma fantástica máquina de poder, pois não só o Estado cresceu desmesuradamente como adquiriu uma postura algures entre a assistente social e a educadora de infância que, ao contrário do que acontece com os poderes tradicionais, dificilmente se contesta mas é muitíssimo mais intrusiva e autoritária: o que comemos ou a educação que damos aos filhos são agora objecto de disposições legais que, independentemente de se concordar ou discordar delas, dificilmente acreditávamos possíveis de serem impostas há alguns anos. A própria consciência de que o sistema está a viver dias muito difíceis acentua este espírito de servidão: todos esperam não ser excluídos do gratuito, do subsídio, do apoio... Por ironia, confirmam-se na democracia os vatícinios do médico Mário Sacramento que, pese a sua filiação marxista, viu na criação das chamadas caixas de previdência uma forma de o salazarismo aniquilar social e ideologicamente os médicos que, tal como ele, exerciam medicina privada.

Quando o Ministério da Educação recusa colocar professores nas escolas primárias que as autarquias e as famílias querem manter abertas, quando apenas se dá a conhecer em Agosto a lista das escolas que vão fechar ou se acaba sem dar satisfações com o ensino recorrente, quem governa porta-se como o dono da coisa. E, de facto, é-o. O próprio protesto a estas decisões governamentais já só se faz sentir se for a administração pública a assumi-lo na figura dos presidentes de câmara ou de junta de freguesia.

O Estado social que temos é economicamente insustentável, socialmente injusto, mas politicamente tornou-se inesgotável para quem o controla. Ensaísta

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