Analfabetos com aulas de dança

Público, 2010-09-23 Pedro Lomba

É uma das nossas grandes certezas: a necessidade de aprendizagem, de educação, o progresso do nosso conhecimento através do ensino paciente e metódico. Mas a educação é um problema e, evidentemente, um problema político sério. Quase sempre, reduz-se qualquer insuficiência individual a uma questão de falta de educação e de ensino. Rousseau foi um pensador importante por isso mesmo. O seu Émile tornou-se uma obra tão ou mais transformadora que o Capital de Marx. O que nos disse Rousseau é que a desigualdade, a imperfeição e o conflito entre pessoas só se podem atenuar através de uma educação pública e igualizadora. Por isso, a educação do jovem Émile segue um programa optimista e abstracto. Émile não aprende com o passado, não aprende para triunfar sobre os outros, para resistir à violência ou para preservar um mérito. É educado para ser um bom cidadão, igual a outros. É educado para essa harmonia social que é a igualdade entre todos os seres humanos, superadora da alienação e das diferenças. O programa de Émile é, no entanto, uma ilusão. A primeira ilusão que comanda a nossa esperança na aprendizagem universal é a educação igualitária. A verdade é que a educação não consiste necessariamente numa experiência feliz ou vitoriosa. Porque os nossos limites são revelados por aquilo que aprendemos e não aprendemos.


Claro que a cultura do "eu" com a qual vivemos, tão marcada pelo romantismo, não aceita com facilidade esta limitação. É curioso como todos somos românticos, emotivos, individualistas. Estamos metidos até aos pés no meio desse imperialismo dos sentimentos. Da literatura de salão ao prosaísmo da imprensa mais idiota, da iliteracia musical ao mundanismo público, somos e queremos ser românticos. Eu não aspiro a ser um cidadão exemplar ou um homem virtuoso. O que eu quero é satisfazer a minha vontade romântica, criadora e expressiva. Aprender a ser eu mesmo. A exprimir a minha autenticidade.
Pode a educação clássica estar em crise. As pessoas não lêem Camões, não escrevem um português rigoroso, não dominam a arte da oratória. Mas nunca foi tão grande a disposição de todos para essa educação emotiva. Paradoxalmente ou não, o ser humano tem um irrefreável impulso de querer saber mais e mais sobre os assuntos que lhe interessam. A oferta é ampla Podemos aprender design de moda e as técnicas orientais de sublimação. Aprender o feng-shui ou receitas vegetarianas. Aprender a suportar a conjugalidade e a neurose. A arte da paternidade e a técnica do parto. Línguas previsíveis ou esotéricas. A dançar e a escrever. Numa história do escritor americano Donald Barthelme, Snow White, uma mulher aplica-se com esmero a estudar as seguintes disciplinas: A mulher moderna: os seus privilégios e responsabilidades, guitarra clássica, os poetas ingleses, as bases da psicologia, a pintura a óleo.
Na verdade, conhecemos bem esta mulher. Ela não se educa para nada, a não ser para o seu próprio prazer emotivo. É uma vítima dos seus desejos e da vulgarização da educação. Esta sua aprendizagem não é nada e, provavelmente, ela nem a usa. Limita-se a exprimir a sua personalidade, o seu "eu" sentimental e carente de informação.
Na era do ensino emotivo, vivemos entre estes dois extremos: a igualdade e a individualidade. Mas não estamos, curiosamente, nem mais iguais, nem mais autênticos. Nem ainda mais educados. Estamos mais sozinhos. Esta educação construída à nossa imagem representa toda uma nova ignorância e criou uma legião de analfabetos. De analfabetos com aulas de dança.
Jurista

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