Custa a crer em tanta coisa que desafia o bom senso

Público, 20100115, José Manuel Fernandes

Estamos cada vez mais habituados "a comer e a calar" e a desistir de raciocinar e de questionar


A alegria com o relatório do Banco de Portugal

Primeiro ouvi, e depois fui confirmar. Era mesmo verdade: na terça-feira, quando o Banco de Portugal divulgou o seu relatório de Inverno, a simples revisão em alta, prudente e sujeita a várias incertezas, do crescimento português para 2010 suscitou de imediato uma reacção quase entusiasmada do ministro das Finanças, Teixeira dos Santos: "a actividade económica começa a apresentar sinais cada vez mais positivos", sublinhou.

Ora sucede que se é verdade que melhoraram as previsões para o crescimento do PIB, é redutor e enganador olhar para os dados do Banco de Portugal apenas por essa óptica. É que quase tudo o resto são más notícias: o rendimento disponível das famílias deve diminuir, mas o consumo privado pode aumentar mais do que o PIB, o que significará menos poupança e mais endividamento; o desemprego deverá continuar a aumentar, pois o relatório prevê uma queda do emprego total de 1,3 por cento; e o investimento voltará a cair, pelo que será pelo lado do aumento do consumo privado (muito dele de bens importados), e não das exportações líquidas, que o PIB crescerá, o que é um sinal de que cresce coxo e agravando outros desequilíbrios; por fim, o défice externo também vai aumentar, devendo ultrapassar em 2011 os 11 por cento, novo máximo das duas últimas décadas.

Políticos responsáveis já estariam a alertar para a necessidade de conter o regresso de alguma euforia consumista e a dizer que teremos de apertar o cinto e mudar de hábitos para corrigir os nossos problemas estruturais. Mas não ouvimos ninguém, ou quase ninguém, a dizê-lo com clareza e, sobretudo, a tirar disso as devidas consequências. Por isso, daqui a dois anos, deveremos ter de carregar um fardo de 10 mil milhões de euros só para pagar, todos os anos, os encargos da dívida, mas também disso não se fala, pois enquanto o pau vai e vem folgam as costas.

Triste irresponsabilidade.

O Orçamento e as universidades

Não sei se se abriam garrafas de champanhe, mas a ocasião merecia: ao fim de uma guerra ora surda, ora estridente, as universidades e os politécnicos conseguiram extrair do Governo a promessa de que receberão mais 100 milhões de euros em 2010 e nos anos seguintes. Isto com a vaga promessa de formarão mais estudantes, ficando por saber se para depois exportarmos os melhores para o estrangeiro e ficarmos por cá com um número ainda maior de licenciados desempregados.

A verdade, nua e crua, é que a generalidade das escolas do ensino superior em Portugal é mal gerida, nelas não se é suficientemente exigente com o trabalho dos professores e quase todas têm demonstrado uma enorme resistência a qualquer reforma. Nem todas são iguais, mas o resultado do acordo é que se atirará para cima de um problema - a má qualidade média e a desadequação de muitas escolas do ensino superior - um montão de euros que só ajudará a perpetuar as ineficiências do mundo dos senhores reitores.

Se isto, só por si, não fosse dramático, há que acrescentar que ocorre num ano em que o Estado está obrigado a cortar na despesa pública. Com acordos destes (e o que ainda estamos para ver, no que se refere às consequências orçamentais, do acordo de Isabel Alçada com os professores), o que está a ser feito é exactamente o contrário.

Em nome de quê? Do cálculo político mais imediatista: calar o descontentamento dos sectores que andaram a protestar na anterior legislatura.

Triste forma de governar.

O absurdo do Alqueva

Oito anos depois da inauguração e de se terem fechado as suas comportas, a Barragem de Alqueva lá conseguiu encher por completo. Razões para festejar? Nem por isso.

Primeiro porque, oito anos passados, o famoso e milagroso regadio que iria resgatar o Alentejo continua a ser uma miragem, e nada indica que algum dia deixe de o ser. Praticamente não há áreas regadas com a água da albufeira, nas terras que já podem utilizar as suas águas os agricultores ainda não sabem quanto pagarão por ela e noutras onde os sistemas de rega deviam ter chegado houve muito boa gente que investiu e, depois, viu os equipamentos apodrecerem sem qualquer uso ou proveito. Ou seja, cumpriu-se a profecia dos que, como Ribeiro Teles, durante décadas, defenderam que o Alqueva não era solução e acabaria transformado em mais um "elefante branco".

Depois porque, ao realizarem a primeira descarga em oito anos, os responsáveis não trataram de garantir que os agricultores que, a jusante, possuem terras e gado, estavam todos avisados de que as águas do Guadiana podiam subir abruptamente. Resultado: 71 cabeças de gado morreram afogadas.

Triste forma de zelar pelos bens próprios e alheios.

O afastamento de Marcelo

Não há outra forma de designar o fim do programa As Escolhas de Marcelo: tratou-se de um acto censório destinado a calar uma voz incómoda e, também, imprevisível. O resto são desculpas. E más desculpas.

Objectivamente, o programa de comentário político de Marcelo Rebelo de Sousa, tendo tido melhores e piores momentos, manteve até ao fim bons níveis de audiência e um share acima da média da RTP1. Ou seja, acrescentava valor ao canal dito de serviço público. Querendo o próprio continuar a fazê-lo, a sua exclusão da grelha não deriva nem da vontade de Marcelo, nem de um qualquer raciocínio sobre o interesse dos telespectadores, que as audiências demonstravam existir.

O argumento, rocambolesco, foi que o programa tinha de acabar para manter "o pluralismo", já que o programa gémeo, Notas Soltas, animado por António Vitorino, ia acabar por indisponibilidade do político socialista. Ora nada aqui faz sentido. Não faz sentido o argumento do pluralismo, pois este não se mede ao milímetro e Marcelo era muitas vezes mais duro para com o seu partido do que para com o PS e o Governo: ele valia como comentador e entertainer, pelo que as considerações da Entidade Reguladora para a Comunicação Social não tinham nem deviam ser seguidas à letra. E também não faz sentido acabar com aquele programa deixando no ar a suspeita de que, no PS ou na área do Governo, não existe ninguém à altura de Marcelo. Até pode ser verdade, mas isso não é um problema da RTP, é um problema do PS.

Estranhamente, não ocorreu agora nenhum escândalo público como o de 2004, quando Marcelo saiu da TVI. O que é um péssimo sinal: cada vez estamos mais habituados "a comer e a calar". Triste país.

Jornalista

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