O povo é quem mais ordena?

Público, 20091203 Helena Matos?

O Governo suíço colocou os seus cidadãos sob uma chantagem que nenhum governo decente tolera quanto mais promove

Depende daquilo que o povo votar. Se o povo votar aquilo que é politicamente correcto, então o povo é sábio e o seu voto a melhor forma de aferir a justeza das propostas dos políticos, sobretudo se estes forem tidos como progressistas. Se o povo não vota aquilo que antecipadamente se decidiu que devia votar, então o povo passa a dividir-se em rurais atrasados versus urbanos avançados. Claro que existem variações desta dicotomia. Admite-se que existam camponeses conscientes, particularmente na América Latina, e urbanos xenófobos, sobretudo na Europa rica. Esta catalogação intelectual dos eleitores além de reconfortante teve o poder genesíaco de fazer brotar na Suíça uma população camponesa capaz de rivalizar com Portugal nos anos 50, pois terão sido esses camponeses atrasadíssimos que votaram contra a construção de mais minaretes. Curiosamente as mesmas vozes que, pegando no caso suíço, se insurgem agora contra o estatuto do referendo não perdoam ao Supremo Tribunal e aos militares hondurenhos terem declarado inconstitucional a realização de um referendo através do qual o então presidente Zelaya pretendia alterar a Constituição do país de modo a prolongar o mandato presidencial.

Nestes relativismos eleitorais pode até acontecer que num mesmo país os mesmos eleitores num mesmo dia ora sejam vistos como modernos, ora como reaccionários. Não é frequente mas aconteceu nos EUA na última eleição presidencial, pois os mesmos eleitores que deram a vitória a Obama rejeitaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Logo veio quem explicasse que tal desacerto se deveu ao facto de muitas mulheres negras que votaram no candidato democrata serem muito religiosas e apegadas à família tradicional, donde terem votado contra o casamento gay. Na Europa esta questão dos perigos do voto das mulheres estava mais ou menos esgotada desde que precisamente os suíços disseram, num outro referendo, que as mesmas podiam votar, mas agora após este desfecho na questão dos minaretes logo surgiu o fantasma do voto feminino ter contribuído para aquele embaraçoso resultado e naturalmente para o ressuscitar dessa coligação de atrasados invariavelmente constituída pelas mulheres e pelos rurais. Outras vezes temos até referendos que começam por ser apresentados como o inevitável corolário de um processo político e que acabam a ser esquecidos: o Tratado Constitucional Europeu que iríamos votar em glorioso referendo acabou a ser resolvido por via parlamentar, não fossem os medrosos eurocépticos vencer outra vez.

Perante esta variação de opiniões sobre os referendos em função dos seus resultados só me resta reconhecer que fomos particularmente injustos com Lopes Mateus, ministro do Interior no ano de 1931, pois, apesar de nunca ter sido conhecido como uma personalidade dada à reflexão, confirmou-se como um precursor desta concepção do voto popular, enquanto mecanismo de confirmação do previamente decidido, quando declarou aos jornalistas que o interrogavam sobre a realização de eleições em Portugal: "Se o Governo caminha espontaneamente para o acto eleitoral (...) é porque tem a certeza da vitória." De igual modo há que fazer justiça a Vasco Gonçalves que 44 anos depois de Lopes Mateus, e no campo político oposto, defenderia no discurso do Sabugo: "Nós não vamos perder, por via eleitoral, aquilo que tanto tem custado aos portugueses." Conviria contudo não esquecer que nestas matérias o povo é como o Deus dos Dez Mandamentos: não se deve invocá-lo em vão, pelo menos muitas vezes. Porque pode sempre acontecer como naquela segunda-feira de Outubro de 1989, em Lepzig, quando os alemães da desaparecida DDR, cansados de verem os seus governantes dizerem que chefiavam uma democracia popular, que aquele era o governo do povo contra a burguesia e que as leis eram as leis do povo, vieram para a rua e gritaram: "Nós somos o povo." Ao contrário do que é de bom tom dizer, nem sempre acho que o povo tenha razão - vejam-se as escolhas de Chávez ou o resultado do referendo na Suíça -, mas isso não nos dá o direito de lhe impor o que ele não quer e sobretudo de fazermos de conta que o povo aprovaria tudo aquilo que em seu nome é decidido.

P.S. - O Governo suíço teve uma atitude deplorável neste referendo sobre a construção dos minaretes. Invocando constantemente o receio de a Suíça vir a sofrer represálias, caso os eleitores votassem contra a construção de mais minaretes, o Governo acentuou o que de pior existe nos estereótipos sobre os muçulmanos e o islão. Ao acentuar o medo, o Governo suíço colocou os seus cidadãos sob uma chantagem que nenhum governo decente tolera quanto mais promove e que deve ter ofendido profundamente os muçulmanos reduzidos àqueles que se vingam quando são contrariados.

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