Um Governo medíocre sob o manto espesso da propaganda

Público, 17.01.2009, José Pacheco Pereira

Em muitos programas está a fazer-se um forcing à custa de dinheiro para atingir os números anunciados por Sócrates

O Presidente da República começou a falar da necessidade de "verdade", uma, duas, três vezes. Não há interpretação possível para essa afirmação que não seja a de haver falta de verdade no nosso sistema político e no debate público, e o principal protagonista dessa situação é o Governo e o primeiro-ministro Sócrates. E de facto, apesar da enorme e espessa nuvem de propaganda, quer oriunda do Governo, quer dos muitos apoios mais ou menos disfarçados, desde os de interesse aos ideológicos, que o Governo tem, exige-se cada vez mais verdade. A isso se soma uma enorme dose de situacionismo, uma doença com raízes muito fundas no tecido público português.
Esse situacionismo difuso está hoje bem patente em duas ideas circulantes que poucos contestam e no entanto não se fundam em nenhuma análise convincente. Uma mistura de opiniões avulsas de jornalistas, autores de blogues e de sondagens, não são uma análise séria, nem servem de prova, por muito que se repitam. Mostram intenção, não demonstram nada. Essas duas ideias difusas interligadas são as de que só o Governo actual tem condicões para combater a crise, e que a oposição (em particular o PSD) não tem nenhuma capacidade de chegar ao poder.
Se eu fosse um governo tipo-Sócrates pagava um milhão pela circulação destas ideias, e não estou certo se tal milhão não foi mesmo pago, entre agências de comunicação, marketing, sessões de casting, despesas publicitárias, envolvendo o complexo PS-Governo-Empresas Públicas e contando com muitas activas cumplicidades. Não é sequer preciso ser conspirativo, há muitas notícias que vêm a público, não são desmentidas, mas também ninguém lhes quer dar uma verdadeira continuidade, nem escrutiná-las. Por exemplo: que papel têm as empresas públicas no pagamento das sessões de propaganda do Governo? Ou quanto gasta o Governo em agências de comunicação, ou seja, em lobbies profissionais organizados, para promover desde o Governo em si até aos ministros e às suas políticas? Isto para não falar do investimento mais vultoso hoje feito em empresas públicas, o da RTP, cujos noticiários e programação de entretenimento, paga pelo erário público, são o melhor exemplo de subserviência ao Governo, por acção e por omissão.
Desde o primeiro minuto que este governo se funda numa mentira: a completa diferença entre o programa de promessas eleitorais com que José Sócrtaes foi eleito e o que ele fez mal ganhou as eleições. Sócrates foi eleito, convém lembrá-lo aos muito esquecidos, com um programa desenvolvimentista, de maior despesa pública, de investimentos, de aumentos de salário, de expansão da despesa pública sem aumento dos impostos. E fez exactamente o contrário. Uma mentira, apoiada noutra mentira: o relatório do Banco de Portugal sobre o défice, assente em pressupostos feitos à medida do freguês, neste caso Sócrates, que justificou a viragem de 180º da política com que vinha da oposição a Santana Lopes (na verdade, a Manuela Ferreira Leite, visto que Lopes já anunciara a "retoma" e era a anterior ministra das Finanças o alvo de uma pressuposta política que entendia que "havia mais vida para além o défice").
Depois, o Governo Sócrates deu importância ao controlo do défice. Fez bem, embora o caminho do controlo fosse o aumento brutal dos impostos e só em menor medida o controlo das despesas públicas. Ao fim de quatro anos, o défice ficou mais controlado, mérito do Governo, mas nem por isso essa consolidação das finanças públicas foi sólida. Continua a haver uma forte desorçamentação e, nos relatórios internacionais, existem fundadas dúvidas sobre a capacidade de o Governo manter o adquirido, já antes do aparecimento da crise financeira internacional. Mas convenhamos que um factor fundamental no sucesso governativo foi o facto de ter excepcionais condições políticas para tomar as medidas duras que se impunham, com uma maioria monopartidária, com um presidente cooperante e com uma oposição do PSD e do PP bem diferente da que o PS fez antes de 2005.
É à luz destas excepcionais condições de governação que os resultados do Governo surgem hoje como muito medíocres. Fez o Governo alguma coisa? Certamente que fez, só faltava que não fizesse, mas fê-lo muito abaixo do que podia fazer e se lhe exigia que fizesse. Se se passar em revista as diferentes áreas de governação, encontramos de novo o problema da "verdade", ou seja, uma série de mentiras escondidas por toneladas de propaganda e uma aquiescência que parece ter como destinatário apenas o Governo.
Resultados favoráveis, mas débeis, no controlo do défice? Muito bem. Resultados no programa do Simplex? Muito bem, mas convém lembrar que algumas medidas já vinham a ser implementadas e preparadas nos governos anteriores e, se muitas vezes se simplificou, de outras complicou-se. Experimentem vender uma casa antiga e obter um "certificado de eficiência energética", uma destas coisas ecologicamente correctas de que os governos gostam muito e para as quais não há infra-estruturas, preparação, celeridade e que imediatamente geram mais burocracia e grandes negócios, encarecendo tudo. Medidas positivas nalgumas reformas no ensino, combatendo o absentismo dos professores? Muito bem, mas corremos o risco de chegar ao fim da legislatura sem avaliação dos professores e sem resultados palpáveis na melhoria dos indicadores qualitativos. Alguma racionalização do sistema nacional de saúde no tempo do ministro Correia de Campos? Muito bem, mas imediatamente travado quando começou a haver protestos. Uma reforma da Segurança Social para adiar (e apenas adiar) a sua inexorável crise? Muito bem. Algumas medidas avulsas noutros ministérios? Com certeza. Mas tudo visto, tudo analisado, em função das legítimas expectativas e condições excepcionais de governação, os resultados são medíocres. O programa das grandes obras públicas, anunciado desde 2005 como uma das chaves deste Governo, zero. TGV, uma má opção, mas boa por parte do Governo, zero. O aeroporto que era para ser na Ota, foi levado teimosamente até quase ao início das terraplenagens e depois zero. Nem Ota, nem Alcochete, mas 200 milhões em indemnizações aos municípios da zona Oeste. O Plano Tecnológico, alguma coisa, muito pouca, e muito erro pelo caminho. A Via CTT, as Cidade Digitais e muitos outros programas parcelares estão a uma enorme distância dos objectivos anunciados. O Magalhães está encravado na capacidade de produção do computador e na resposta débil que teve em termos de pedidos, abaixo dos anunciados, para além de muitas obscuridades e, acima de tudo, do seu real desfasamento do ensino básico, algo que não foi estudado, preparado, previsto. O Programa das Novas Oportunidades está a pouco mais de 50 por cento da execução prevista e longe de manter na sua continuidade os critérios de qualidade mínima nas qualificações exigidas.

Em muitos destes programas está-se hoje a fazer um forcing à custa de dinheiro e atamancando a qualidade, para atingir números próximos dos anunciados pelo primeiro-ministro Sócrates, nas sessões de propaganda. Pagamos caro por esse esforço de "trabalhar para as estatísticas", incluindo promoções absurdas como a da Via CTT, em que, se arranjar vinte "amigos" para ter o e-mail electrónico dos CTT, ganha um iPod Nano. O programa falhou redondamente mas, para o primeiro-ministro não perder a face, ele que foi a uma estação dos correios anunciar o "e-mail para todos os portugueses", dão-se agora iPods. Aqui, como em muitas matérias, percebe-se que a pressa entre o deslumbramento tecnocrático do "fazer" e a preparação e cuidada utilização dos dinheiros públicos, se inseriu um estilo de preparação em cima do joelho, que teve muito fogo de vista, mas pequenos resultados. E que foi caro, muito caro.
Não faltam exemplos e, se mais escrutínio houvesse da "coisa pública", ainda mais se conheceria. Infelizmente, só agora começa a haver alguma consciência de que afinal a governação Sócrates foi medíocre, mas o chapéu imenso da "crise financeira" torna a ser trazido para tapar as maleitas destes anos desperdiçados. Esquecemos a "crise que está cá dentro" pelo gigantismo da "crise que vem de fora", mas isto tem um enorme risco: o de deixar um Governo medíocre a tratar de coisas sérias e a hipotecar, num programa que pouco mais vê do que o período até às eleições, o futuro do país. É mesmo isso. A verdade. Aquilo que o Presidente pede.
Historiador

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