Os "poderes ocultos"

Público, 31.01.2009, Vasco Pulido Valente

Assisti anteontem na televisão ao que foi até agora o espectáculo mais triste da democracia portuguesa.
Falo da sessão em que o sr. primeiro-ministro declarou que estava a ser vítima de uma "campanha negra" conduzida por "poderes ocultos".
Seria penoso explicar quem (e porquê) historicamente usou esta linguagem.
Basta aqui dizer que, do século XV ao fim da II Guerra Mundial, ela esteve sempre associada ao fanatismo, ao terror e ao arbítrio.
Não acredito que Sócrates tenha tido consciência disso. Mas certas palavras não se dizem sem um certo espírito. E esse espírito inquieta. Não se diaboliza o adversário (e um dos nomes do Diabo era o Oculto) por acaso ou por lapso.
O exercício pressupõe uma profunda convicção da virtude própria e da maldade alheia; e um ódio ao "Inimigo" (outro nome do Diabo) sem regras, nem limites. Quando Sócrates denuncia os "poderes ocultos", a denúncia é por definição universal. Porque afinal quem são ou o que são os "poderes ocultos"? São tudo e não são nada, é toda a gente e não é ninguém.
Qualquer instituição, qualquer pessoa, qualquer categoria de pessoas fica forçosamente sob suspeita. Como garantir que por detrás da inocência não se esconde a culpa? Ou por detrás da honestidade a fraude? Conhecerá ele mesmo os "poderes ocultos", que não revela para nos deixar o redentor encargo de os descobrir? Devemos nós condenar a imprensa e a televisão? O capitalismo? O PSD? O PCP? A extrema-esquerda? Ou a polícia, a Procuradoria e a Inglaterra? Ou simplesmente devemos condenar (e perseguir?) quem prejudica ou ensombra o nosso chefe?
Sócrates jura que os "poderes ocultos" não o "vencerão".
A escolha do verbo é também desta vez significativa. Quem o ouvisse não perceberia de certeza que se trata de uma investigação judicial ou que se vive num regime em que o judicial cumpre e faz cumprir a lei. Sócrates não vê o caso como apuramento da verdade (inevitavelmente relativa). Mas como uma espécie de duelo entre o Bem e o Mal (um "teste de resistência"), entre ele e os "poderes ocultos".
Num duelo, ou se ganha ou se perde e ele, um "homem determinado", vai ganhar. Outro primeiro-ministro esperaria pelas conclusões do inquérito e negaria tranquilamente as calúnias. Quando muito, ameaçava processar os caluniadores. Sócrates prefere o melodrama e a intimidação: quem daqui em diante duvidar dele é um instrumento, "negro" e miserável, dos "poderes ocultos".

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