O mistério do génio

O MISTÉRIO DO GÉNIO
Diário de Notícias, 080915
João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Um dos paradoxos mais surpreendentes do nosso tempo é a escassez de génios. É evidente que temos mais meios e facilidades para nos dedicarmos ao pensamento e arte que em toda a História. Qualquer um, na Europa e na América, e em breve na Ásia, tem mais formas para criar e liberdade de expressar que os ricos tinham há poucos séculos. Onde estão, então, os novos Mozart e Dante? Os émulos de Platão ou Miguel Ângelo, Shakespeare, Sun-Tzu, Esopo ou Fídias?

A civilização humana registou avanços incríveis nos últimos tempos. A ciência e a técnica puseram ao dispor da humanidade meios espantosos que, graças à globalização, se espalham por todo o planeta. Há duzentos anos, mesmo no centro da civilização, Roma, Paris ou Londres, grande percentagem da população vivia apenas ocupada com a sobrevivência quotidiana. Hoje, até nas zonas mais remotas, Internet e telemóvel põem na mão de todos instrumentos poderosíssimos de conhecimento e beleza. Porque razão não aparecem mais génios?

A arte sempre foi exigente. A maior parte das obras de Aristóteles ou Praxíteles perdeu-se, Maquiavel só foi publicado depois de morto e Camões teve de salvar o original de Os Lusíadas de um naufrágio. Muitos génios morreram jovens de doenças hoje banais, Beethoven foi amargurado por uma surdez evitável e Bach ficou cego ao passar noites a compor à luz da vela. Hoje, pelo contrário, qualquer criança, sem custo ou esforço, tem nas mãos uma tipografia mais universal que Cervantes, uma paleta mais rica que Rafael, um estúdio mais sofisticado que Chaplin. No entanto não vemos por cá génios como Cervantes ou Rafael. Nem sequer Chaplin. Temos cópias e repetição, poucos originais.

A incrível redução de custos da era da informação revolucionou o mundo material. Deveria ter revolucionado o espiritual. Na música, literatura, poesia, pintura, arquitectura, desenho, filosofia, sobretudo na fotografia e cinema, os avanços modernos alargaram enormemente o acesso e abriram novos campos de criatividade. É verdade que não facilitam algumas artes, como escultura, ourivesaria, teatro ou dança. Mas mesmo nessas aumentaram a divulgação. No entanto os efeitos de tudo isto foram ambíguos. Verificou-se, como seria de esperar, uma explosão de boçalidade e disparate, de obscenidade e malícia. O que faltou, e também se esperava, foi o aumento das maravilhas de beleza, elevação, reflexão e criação.

Num caso mais prosaico (e controverso), podemos perguntar onde estão os artistas e obras notáveis que, alegadamente, a liberdade de Abril veio permitir em Portugal? Supostamente, a «longa noite do fascismo» reprimiu o génio lusitano por 48 anos. Mas nos últimos 34 não parece haver grande brilhantismo. Sem juízo de valor e dando desconto à época, até temos de dizer que as obras de Manoel de Oliveira e José Saramago têm menos popularidade e longevidade que as de António Lopes Ribeiro e Ferreira de Castro.

Sabemos há muito que, enquanto ciência e técnica são processos cumulativos, acrescentando-se ao trabalho anterior, arte e criatividade não crescem no tempo. De facto Homero e Horácio, Leonardo e Rembrant, S Paulo e S. Francisco não seguem uma linha temporal de avanço.

A criatividade sempre foi caprichosa. Aliás, o génio tem uma inexplicável tendência para se concentrar. No século VI aC viveu a grande maioria dos fundadores religiosos: Buda, Confúcio, Lao-Tzé, Zoroastro, Pitágoras, Jeremias e Ezequiel, os criadores do Jainismo e Orfismo e os autores dos Upanishads hindus. Enorme percentagem dos maiores artistas e pensadores situa-se em períodos limitados, os séculos de Péricles, Augusto, Carlos Magno e S. Luís, a Renascença, o período Isabelino, o Iluminismo. Existem naturalmente excepções, como S. Agostinho ou Maomé, mas os maiores criadores da História viveram em geral em eras de florescimento e estabilidade cultural.

Os últimos duzentos anos foram o oposto disso, uma espantosa época de transição, mudança, instabilidade, conflito. Estaremos talvez a criar as condições para os génios do futuro.

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