Eles eram assim

Rui Ramos – PÚBLICO, 20080924

O historiador do futuro entenderá uma sociedade onde era mais fácil desligar-se do marido do que de um empregado?No PÚBLICO de sábado passado, o padre Gonçalo Portocarrero de Almada observou que em Portugal se tornara mais fácil aos cidadãos, pela lei e segundo os procedimentos nela previstos, desligarem-se do marido ou da mulher, do que de um empregado. Talvez nem todos aceitem esta comparação entre as leis do casamento e do trabalho. Mas vamos admitir que um dia, daqui a muitas gerações, algum historiador futuro faça o mesmo para tirar conclusões sobre como nós, portugueses de 2008, pensávamos e vivíamos. Como dirá que nós éramos?
Talvez contraditórios, se aceitar a interpretação que das leis fizeram os seus proponentes. Porque a lei do casamento convencê-lo-á de que, em 2008, concebíamos as relações entre as pessoas como fundamentalmente contingentes, sem demasiadas consequências; e as leis do trabalho, como fundamentalmente estáveis, e com sérias consequências. Ao princípio, ocorrer-lhe-ão duas hipóteses para explicar a inconsistência. Uma é a de que dávamos mais valor ao trabalho do que ao afecto: um povo de formigas, disponíveis para mudar de família, mas não de emprego. A outra, que constituíamos uma sociedade plural, onde se chocavam duas correntes opostas: uma que gostaria de reduzir as relações a encontros efémeros, unicamente dependentes do interesse e vontade de cada um, e outra que pretenderia consagrá-los como uniões firmes, condicionadas por um interesse geral. A primeira corrente teria ganho o debate do casamento, mas perdido, por qualquer razão, o do trabalho.
Se prosseguir a pesquisa, rapidamente o historiador do futuro descobrirá os limites desta hipótese. Porque as duas leis, aparentemente contraditórias, foram promovidas pelo mesmo partido, no governo em 2008. Usando as categorias de esquerda e direita, o historiador concluirá, a partir dos debates, que à esquerda se desejava, em geral, leis que facilitassem a dissolução dos contratos no casamento, mas não no trabalho; e à direita, também em termos gerais, o contrário. Nem à esquerda nem à direita, se usavam argumentos de carácter religioso. Todos reclamavam defender a suposta "parte fraca" das relações (mulher e filhos num caso, empregados no outro), e todos acreditavam no poder das leis para gerar situações sociais. Mas à direita, aparentemente, favorecia-se como modelo uma sociedade civil forte com uma economia dinâmica, o que pressupunha unidades familiares consolidadas e agentes económicos livres para recorrer ao trabalho de um modo flexível; e à esquerda, havia mais disponibilidade para aceitar a tutela do Estado, e portanto não incomodava a ideia de uma sociedade atomizada e de uma economia limitada.
Mais uma vez, porém, o nosso historiador será forçado a renunciar à explicação. Para começar, porque adoptou um ponto de vista parcial: à direita, em 2008, defendia-se o modelo que lhe foi atribuído, mas à esquerda, sobretudo na esquerda governamental, não se advogava um Estado forte numa sociedade e numa economia fracas. Neste ponto, o historiador do futuro terá duas alternativas. Uma é atender às necessidades eleitorais da esquerda governamental, confrontada em 2008 com previsões de voto demasiado altas a favor das esquerdas da oposição. Ora, as esquerdas da oposição ensinavam que ser de "esquerda" era golpear a "religião" e a "burguesia", e que fomentar a precariedade no casamento (sacralizado pela igreja) e combatê-la no trabalho seriam outros tantos golpes. Para roubar audiência às esquerdas da oposição, dava jeito à esquerda governamental passar o mesmo programa (de sentido contestado no caso do trabalho).
Mas talvez ao historiador do futuro custe a admitir que em Portugal, em 2008, coisas fundamentais estivessem sujeitas a cálculos eleitorais. Por isso, será quase de certeza tentado finalmente pela tese de que as leis satisfaziam, de facto, expectativas geralmente partilhadas - o que explicaria, aliás, o facto de até o maior partido à direita ter fornecido alguns votos à lei do casamento.
Que prometiam as leis? Com relações de trabalho condicionadas pelo Estado, o emprego representaria, na prática, uma renda, que o empregador só poderia cortar passando através do buraco da agulha burocrática; com casamentos descartáveis sem culpa, seria possível recorrer ao registo civil para justificar festas e luas-de-mel e depois repudiar o contrato sem comprometer o património.
Eis o que os portugueses, em 2008, aparentemente desejavam: "trabalho" assegurado pelo Estado, e "afecto" sem responsabilidades. E posto isto, o historiador dirá: "eles eram assim". Não somos assim?
Historiador

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