Orgulho e responsabilidade

RAUL DE ALMEIDA    JORNAL ECONÓMICO  04.07.17

Assinalamos por estes dias a passagem de 150 anos sobre o fim da pena de morte em Portugal. O Decreto assinado por D. Luiz antecedeu em muito as decisões similares que felizmente se foram implementando pela Europa.
Será relevante recordar que a Alemanha Ocidental só aboliu esta prática em 1949, o desenvolvido e democrático Reino Unido em 1965 e a França, intitulada a terra dos direitos, liberdades e garantias, em 1981, com reconecimento constitucional apenas em 2007.
É importante ter presente que países democráticos com vários indíces de desenvolvimento de altíssimo nível, como os Estados Unidos e o Japão, ainda consagram na sua legislação a pena capital.
Não é de estranhar, mas igualmente de lamentar, que a maioria das ditaduras gostou e gosta desta possibilidade de ter o Estado a tirar a vida ao homem por meios legais. Foi assim na Alemanha de Leste, até às vésperas da sua queda, é assim na China, no Irão ou na Arábia Saudita, só a título de exemplo.
Portugal foi, assim, pioneiro, humanista e corajoso. Tal como o foi, desafiando poderes, fortunas e soberania, com a abolição da escravatura. Por muitas desditas que tenhamos desde então passado, temos um património herdado de valorização do homem que nos deve encher de orgulho e responsabilidade. Se me entusiasma, como a qualquer bom português, a narrativa das descobertas e da primeira grande globalização, não deixo de pensar que os legados da abolição da pena de morte e da escravatura têm um alcance muito mais profundo e duradouro. São iniciativas de profundo humanismo ao serviço do homem, em detrimento do eventual conforto do Estado.
Na altura, D. Luiz e os governos do seu reinado não cuidaram de condicionar a sua iniciativa às inclinações europeias sobre a matéria. Não tiveram medo de perturbar alguma paz implícita sobre estes assuntos, muito menos de seguir acriticamente os já então ditos desenvolvidos.
A força moral destes princípios é de tal razão, que nem a alucinação violenta da primeira república ou a repressão das décadas de ditadura ousaram pôr em causa estes princípios sagrados do corpo legal e moral português.
Por isto, também por isto, me entristece profundamente a adesão do Portugal actual, muito distante de um verdadeiro Portugal moderno, à consagração de legislação que contraria precisamente o primado da inviolabilidade da vida humana. A legalização do aborto, a sua promoção e banalização; o equívoco da sua promoção como direito da mulher que acaba como sua vítima, são actos que envegonham um Estado, uma sociedade com os nossos pergaminhos na defesa da vida e da dignidade. A persistência militante dos defensores da eutanásia, constitui-se como um ataque directo a este património moral que se consolida há 150 anos.
Os argumentos dos militantes destas causas de ataque e menorização do valor da vida humana são bem conhecidos. Inchados de vazio, dizem-nos que o aborto se pratica em todo o mundo civilizado e que seria um sinal de atraso Portugal não o oferecer no seu sistema nacional de saúde. Fizeram os referendos necessários até terem a vitória mais negra que poderiamos registar na história. Vêm mais ou menos de mansinho agora com a eutanásia, invocando indignamente uma suposta dignidade na subtracção da vida e, mais uma vez, a necessidade de seguirmos a Europa dita civilizada. Foi preciso deixar passar mais de um século, de viver em Democracia, para pôr em causa princípios que nos fizeram pioneiros na Europa e no mundo.
Pois é, se seguíssemos há 150 anos a Europa dita civilizada, teríamos vergonhosamente a pena de morte por mais um século do que tivemos. Teríamos a escravatura por muito mais tempo. Sacrificaríamos violentamente vidas humanas e seríamos uma sociedade moralmente muito mais pobre. Foi então necessária muita coragem, foi imperioso compreender que nem tudo o que se institui maioritariamente em determinada época é éticamente aceitável ou moralmente digno.
Por fim, os arautos de hoje destas causas fracturantes são, na sua esmagadora maioria, os herdeiros directos do jacobinismo, os mensageiros da revolução que banalizou a guilhotina, os arautos dos direitos que tão bem conviveram com a pena de morte até há tão poucos anos atrás, tão poucos perante os 150 que celebramos.
Era tão bom que soubéssemos manter o carácter que nos fez pioneiros, que a nossa moral não se deixasse abater pelo relativismo que insidiosamente nos vais fazendo deixar de ser quem fomos.

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