O que será feito da deputada cigana?


HELENA MATOS   0BSERVADOR   17.07.17
Em meados de Junho no tempo em que tudo corria bem rebentou a crise da deputada cigana. Depois aconteceram Pedrogão e Tancos e o caso da deputada cigana foi encerrado. Agora é a vez de Gentil Martins
1. O país está a regressar ao normal e num sinal inequívoco do regresso a essa normalidade já voltou ao bom hábito da indignação semanal. Esta semana as fúrias, os chiliques, os ais e os uis caíram sobre Gentil Martins que declarou ser a homossexualidade uma “anomalia” e as barrigas de aluguer um crime. Pelo meio Gentil Martins ainda fez uns comentários sobre Cristiano Ronaldo. Quanto à homossexualidade discordo de Gentil Martins já no caso das barrigas de aluguer concordo: independentemente do que diga a lei vejo-as como um crime.
Gente pressurosa ameaça Gentil Martins com queixas na Ordem dos Médicos e a Ordem logo responde que as queixas (ainda não apresentadas mas apenas anunciadas) irão ser analisadas pelo Conselho de Jurisdição da Ordem dos Médicos. Tudo isto aconteceu num sábado pormenor não despiciendo quando se conhecem, nos dias úteis quanto mais ao fim-de-semana, as reservas, as delongas e o apego aos procedimentos por parte dessa mesma Ordem se solicitada pronunciar-se acerca do comportamento clínico dos médicos.
Sobre partos mal feitos a Ordem dos Médicos demora a falar e se o faz usa mil cautelas. Já acerca das opiniões produzidas por um médico sobre a mãe de Ronaldo e as mães dos filhos de Ronaldo a Ordem garante rápida e pressurosamente que se vai pronunciar.
Antes da indignação com Gentil Martins e os seus considerandos sobre a homossexualidade e as barrigas de aluguer tivemos a extraordinária crise da deputada cigana. Como ponto prévio a essa crise tão crucial quanto oca é importante explicar que apesar de ciganos e não ciganos sermos todos iguais, numa daquelas contradições em que o igualitarismo é pródigo, chamar cigano a alguém pode ser considerado um insulto. Ou, mais confuso ainda, se alguém disser que num determinado edifício vivem ciganos isso pode ser visto como racismo mas se os locatários desse mesmo edifício fizerem um agrupamento musical e o designarem como “ciganos disto ou daquilo” a isso chama-se orgulho das raízes.
Mas vamos então à crise da deputada “dita cigana”: estava-se em meados de Junho no tempo em que tudo corria bem e um eurodeputado do PS chamou cigana a uma colega de partido. Logo veio António Costa não só mostrar a sua indignação como defender a expulsão do eurodeputado em causa: “É uma vergonha” – declarou indignado e inconformado António Costa. Depois aconteceu Pedrogão e os seus 64 mortos e dezenas de feridos. Em seguida foi o roubo de Tancos. António Costa não só não pediu a expulsão de ninguém como não pareceu particularmente envergonhado em momento algum.
2. Por agora a deputada “dita cigana” parece esquecida e Gentil Martins acabará a ser deixado em paz (ser velho é nestes casos uma vantagem) mas não duvido que voltaremos à rotina destes autos de fé contemporâneos. Porque é através destes autos de fé eles, dessas reações espalhafatosas e verbalmente inflamadas, que os radicais mantêm capturada a sociedade.
Durante anos e anos milhares de militantes de grupos e grupúsculos de esquerda consumiram-se em lutas internas para determinar à luz de Marx, Lenine, Trotsky ou Mao, quem era da linha vermelha e da linha negra, seguidista, carreirista, obreirista, desviacionista, divisionista, espontaneísta, legalista, arrivista, capitulacionista ou liquidacionista (há mais categorias mas estas recolhidas em menos de 10 minutos já traçam um retrato aproximado do que entretinha aquelas cabeças).
Por estranho que possa parecer a um observador esse mundo demencial longe de se ter extinguido, no final dos anos 80 espalhou-se qual mancha de óleo sobre as nossas vidas: os outrora militantes tornaram-se activistas e muito devidamente instalados em gabinetes universitários desataram a determinar assédios, homofobias, racismos e questões de género. Tal como no passado: os meios justificam o seu fim na hora de provar que ainda existe quem não concorde com as suas regras. Ou que não manifestando uma discordância directa às vezes acusa num comentário à hora do café ou no intervalo de uma reunião que algum recanto do seu cérebro ainda precisa de mais um pouco de doutrina. (Neste domínio de mundo quase orwelliano que estamos a construir aconselho a leitura da entrevista dada ao Observador por Maria do Mar Pereira, professora associada no Departamento de Sociologia da Universidade de Warwick (Reino Unido) e directora do Centre for the Study of Women and Gender: o que a senhora designa como investigação sobre género parece transcrito do manual das polícias dos anos 30 para observação e correcção de atitudes desviantes).
É um erro fatal acreditar que basta ignorar esta gente para não se ser afectado pelo seu zelo inquisitorial: o que comemos, bebemos, vestimos, as palavras que ensinamos aos nossos filhos e os brinquedos que damos aos nossos netos, tudo é pretexto para que imponham as suas teses e executem a sua engenharia social. Mais, são eles quem decide o que se pode ou não discutir. Durante anos trataram depreciativamente como dramas de faca e alguidar o que depois fizeram uma causa sua: a violência doméstica. Agora determinam que não se pode falar de questões de segurança: é populismo, dizem. Um dia farão dos assaltos às casas uma bandeira e logo toda a sociedade terá de ir a reboque do que de mais destrambelhado lhe ocorrer propor. No caso da família e do sexo foi precisamente isso que aconteceu: de início a luta pela igualdade entre homens e mulheres foi vista como um desperdício burguês porque a igualdade que contava e da qual decorriam todas as outras era a igualdade entre classes. Abstenho-me de escrever aqui o que os defensores da igualdade de classes então diziam sobre os homossexuais. Anos depois já nem de sexo se fala, vivemos numa espécie de ditadura andrógina ao serviço de uma entidade chamada género. Um dia esquecerão o género e outro tema os inebriará. Com igual espírito inquisitorial.
3. Durante a entrevista do Expresso a Gentil Martins é abordada a questão das barrigas de aluguer. Pergunta o Expresso: Como é que vê a hipótese de um homem solteiro ter filhos recorrendo a uma barriga de aluguer, como alegadamente foi o caso de Cristiano Ronaldo?
Não deixa de ser curiosa a referência do Expresso ao estado civil de Ronaldo como se esse estado civil tivesse alguma relevância para o caso. Ora o problema do recurso às barrigas de aluguer não está no facto de ser um homem solteiro o autor da encomenda/compra da criança. Fosse Ronaldo casado, por exemplo com a enigmática Georgina, e o problema seria o mesmo: com que direito se separaram essas crianças da sua mãe? Que implicações teve essa separação na vida dessa crianças e da sua mãe?
Um relatório realizado em França entre 2015 e 2017 analisou em detalhe consequências naquele país e no mundo do chamado direito à criança. No caso das barrigas de aluguer as conclusões são aterrorizadoras: mães jovens e pobres aceitam contratos em que durante nove meses são tratadas como escravas. Os encomendadores impõem um modo de vida, definem-lhe as deslocações e o modo de vida: se podem ou não pintar as unhas, o regime alimentar – ai os especiais cuidados com a alimentação biológica! – proíbem-lhes usar micro-ondas ou ir a funerais… No caso da mãe estar na Índia ela passará muito provavelmente a gravidez encerrada na clínica. Se estiver nos EUA será objecto de vários controlos para se verificar se tudo corre como o contratado.
Nessa espécie de “patercentrismo” que se abateu sobre este debate centra-se a discussão na identidade de quem encomenda/paga a criança – se é solteiro, casado, gay, se está feliz com os bebés… – e desvaloriza-se a criança em si mesma e a sua mãe.
Não deixa de ser significativo dos tempos que vivemos que Ronaldo seja investigado porque pode ter procurado pagar menos impostos – note-se que não roubou ninguém, não usou indevidamente dinheiro dos contribuintes, simplesmente pode ter procurado pagar menos impostos – e se aceite como legal e moralmente aceitável que tenha filhos através de um contrato em que as pessoas – no caso as crianças e a sua mãe – são tratadas como uma mercadoria.
As autoridades irromperam pelo iate em que Ronaldo veraneava para verificar se a documentação do barco estava em dia. E a documentação das crianças o que dizia?

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