O seu filho não é bom

Henrique Raposo, Expresso, 2015.05.16

Meu caro leitor, a minha escola era a “A Guerra dos Tronos” em miniatura, era Westeros cruzado com o Portugal dos Pequenitos: existiam diversas famílias de gangues que lutavam pela supremacia do pátio. 
Claro que eu, sujeito deveras democrático, levei democraticamente pancada de todas as famílias brasonadas deste submundo. Destaco a Casa Barrigas, que fazia questão de mostrar a arma no coldre, e a Casa Carlitos, que fazia questão de mostrar delicadeza no assalto, “arranja aí uns trocos”. 
Sabe qual era a minha tática de sobrevivência, caro leitor? 
As miúdas. Sacar a miúda certa da família certa era sinónimo de proteção.
Por exemplo, lembro-me do feliz período em que fui uma espécie de gigolô da Casa Barrigas, visto que namorava uma amiga do chefe. 
Ora, isto foi há vinte e tal anos, e nada mudou. 
Nem vai mudar. 
As escolas são terrenos de poder, maldade e humilhação, porque crianças e adolescentes não são bons por natureza. O que mudou foi a amplitude da crueldade. No passado aquilo ficava no confessionário da escola, hoje salta para o mundo através de iPhones e internets. 
Se tivesse iPhone, o Lord Barrigas teria filmado atrocidades muito piores do que aquelas que temos visto. 
Se tivesse iPhone, eu provavelmente teria filmado as atrocidades que a amiga do Barrigas me fazia nos caniços atrás do ginásio; esses vídeos seriam a perfeita apólice de seguro contra o bullying. 
Repare que me incluo na imundície. Não é por acaso. A típica reação das pessoas a casos de bullying (físico e sexual) é sempre a incredulidade. 
Nesta semana, o caso da Figueira da Foz desencadeou essa reação nos cafés, no Metro, nas redes. 
Até aposto que você, caro leitor, subiu no palanque lá do café onde toma a bica para dizer “como é que é possível? Filha minha não fazia aquilo! Filho meu não ficava quieto”. 
Deixe que lhe diga uma coisa: o seu filho é tão mau ou pior do que aqueles que aparecem nos vídeos. Ou, pelo menos, tem lá dentro o germe dessa maldade. 
E, por favor, não comece com a história das “companhias”. 
O problema não são as “companhias”, o problema é o seu filho. 
A natureza humana não precisa de “companhias” para encontrar a perversão e a humilhação dos mais fracos. Como sabe, a frase-bordão de “A Guerra dos Tronos” é “winter is coming”. O inverno está a chegar? Não, o inverno já está cá dentro, o inverno somos nós. O inverno sou eu, o inverno é a minha filha. 
Quer isto dizer que nos devemos render ao cinismo? Não. 
Quer dizer que a bondade é uma construção moral e racional que nada deve à natureza humana. 
Nós, por natureza, não somos bons. 
Por outras palavras, devíamos passar menos tempo a educar os filhos dos outros ou a desenvolver teorias abstratas sobre a infância ou juventude; devíamos, isso sim, olhar com mais dureza para os maus selvagens que temos dentro de casa. 
Lamento, meu caro amigo, mas o seu filho não é especial, o seu filho não é bom por natureza. Ou melhor, será bom se você compreender que criar um ser humano decente é o trabalho mais difícil que alguma vez terá entre mãos.

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