Família securitária

Inês Teotónio Pereira
ionline, 2015.05.16

Ao fim de alguns anos a montar esta rede, posso dizer com orgulho que os meus serviços secretos não envergonhariam qualquer país da antiga Cortina de Ferro.
Eu sou daquelas mães que proíbe os filhos de fazerem imensas coisas. Sou uma espécie de mãe securitária. Chego mesmo a ter uma rede de informadores, dentro da minha própria casa, ao estilo da Stasi, e cultivo a política do bufo. Ou seja, todos os meus filhos estão autorizados a fazer queixinhas uns dos outros, a denunciarem situações de injustiça e a alertarem os seus progenitores quando outro ou outros transgridem as regras.
Por exemplo, quando alguém não puxa o autoclismo, têm todos a obrigação de denunciar o prevaricador de forma que ele possa ser devidamente sancionado; do mesmo modo, sempre que um mais forte bate noutro mais fraco, com ou sem razão, também deve ser denunciado.
Também recorro muitas vezes a esta rede de bufos para estar a par da vida de cada um dos meus filhos. Com quem eles se dão na escola, se andam a estudar ou não, se andam tristes, se se queixam de mim, etc. A única coisa que não permito é que eles contem segredos que lhes foram confiados. Mas ainda depende: se o segredo prejudicar alguém, deve ser tornado público.
Ao fim de alguns anos a montar esta rede, posso dizer com orgulho que os meus serviços secretos não envergonhariam qualquer país da antiga Cortina de Ferro. Aliás, suspeito mesmo que o Muro não teria caído se todos os profissionais dos serviços secretos desses países trabalhassem tão bem quanto os meus filhos.
Esta minha rede é fundamental para fazer cumprir a lista detalhada de coisas que eles não podem fazer e de obrigações que eles têm de cumprir. Pois, como eu tenho filhos a mais e tempo a menos, preciso de ajuda para a devida monitorização.
Só para dar alguns exemplos, correndo o perigo de ser exaustiva, em minha casa é proibido: os mais velhos baterem nos mais novos, comer na sala, comer fora das refeições qualquer coisa que não seja leite ou fruta, ver televisão se alguém estiver a estudar (a não ser o canal Babyfirst), andarem descalços, jogar futebol na sala ou na varanda, terem os quartos desarrumados (que é como quem diz, não haver coisas no chão), ver o “Dead Man Walking” (só é permitido a partir dos 16 anos), jogar videogames de guerra e de cabeças a saltar se os mais novos estiverem a assistir, ligar para telemóveis do telefone de casa ou fazer o bebé gritar.
Ora, é fácil perceber que, sem bufos, é impossível fazer cumprir todas estas regras e mais outras tantas que não me dei ao trabalho de nomear.
É claro que estou consciente, como qualquer ditador minimamente competente deve estar, de que, muitas vezes, os meus filhos conspiram contra mim e organizam-se de forma a conseguir proteger-se uns aos outros em nome de uma qualquer prevaricação. E, muitas vezes, conseguem.
Nestes casos, eu trato de aliviar a tensão para que não aconteça uma revolução e cedo numa ou noutra regra – não tanto quanto Gorbachov, mas vou cedendo. E é assim que tenho conseguido que a casa não nos caia em cima e que os meus filhos não sejam obesos.
Mas a verdade é que não consigo mais do que isto. As minhas regras, a minha gestão familiar securitária servem apenas para que consigamos todos viver uns com os outros com alguma harmonia. Mas pouco mais. Tudo o resto, ou seja, a educação deles, vai muito para além das regras. O que nos une verdadeiramente, aquilo que nos transforma, de facto, numa família são os valores que partilhamos e que transmitimos uns aos outros. Só eles farão dos meus filhos bons cidadãos.
Quando casos como os desta semana de violência são tornados públicos, lembro-me sempre das minhas regras e de como elas são tão insignificantes ao pé dos valores que tento transmitir aos meus filhos. É que, em minha casa tal como no país, não há regras ou leis que nos valham se não existirem valores. E este é um desafio das famílias, não do Estado ou dessa entidade abstracta que é a sociedade.

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