O sector GES

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2015.05.27

O colapso do Grupo Espírito Santo é, simultaneamente, único e típico. Este paradoxo constitui mais um elemento insólito do extraordinário fenómeno que começamos a compreender graças a investigações como a do Parlamento.
Não é difícil constatar a espantosa singularidade da situação. Em qualquer país do mundo seria raríssimo que uma família conseguisse tal longevidade, sucesso e controlo nos negócios, consistentemente ao longo de múltiplos e contraditórios regimes e conjunturas. A partir de um núcleo original financeiro, mas estendendo a presença a variados sectores, aquilo que se veio a chamar o GES esteve quase 150 anos no centro das decisões nacionais. E, mesmo quando tudo pareceu terminar, com a nacionalização de 1975, conseguiu um renascimento espectacular que lhe trouxe ainda mais poder e influência. Ricardo Salgado foi, se possível, mais respeitado e determinante na política e economia que os seus ilustres antepassados.
Se era imponente em vida, o GES foi-o ainda mais na morte. A estranheza do longo êxito conseguiu ser ultrapassada pela queda de 2014, tão completa, súbita e imprevista que apanhou todos de surpresa. Nas vésperas do colapso, o grupo gozava ainda de enorme prestígio, credibilidade e firmeza. Ninguém, nem mesmo os denunciantes, antecipava a dimensão do desastre. O espanto desarmante das autoridades, que tinham por obrigação acompanhar estes casos, testemunha-o claramente.
Apesar de única, a situação é também muito mais comum do que parece. Podemos mesmo tomar o caso GES como representativo de um vasto sector da nossa economia. Precisamente aquele que há anos tem travado a nossa dinâmica, adiando o próximo surto de desenvolvimento.
A família Espírito Santo conseguiu fingir que possuía um conglomerado económico próspero, disfarçando os prejuízos com empréstimos indulgentes do banco do clã. Esta consanguinidade é rara, mas existem muitos outros negócios, esperemos de menor dimensão, também quase falidos mas mantidos à tona graças a condições de favor, conseguidos através de influências pessoais e políticas. Os mecanismos são variados e os expedientes múltiplos, mas pululam na nossa economia os mortos-vivos, alimentados artificialmente por rolamentos de dinheiros que encobrem inanidade produtiva. Muitos até parasitam empresas saudáveis, como o GES fez à PT. A partir de certa dimensão, o próprio banco que concedeu os auxílios incobráveis tem interesse em manter a ilusão, para não assumir perdas no balanço.
Sendo, por definição, ocultas, não é fácil identificar as circunstâncias e empresas concretas. Mas os sintomas generalizados de apatia empresarial, aperto financeiro e autismo bancário dos últimos anos são por demais evidentes. A recessão acabou no início de 2013, o BCE tem jorrado imenso dinheiro e agora até os preços de petróleo dão uma ajudinha. Apesar disso o crescimento é anémico, o volume de crédito continua a cair e os novos empréstimos produtivos mantêm-se em níveis ínfimos. Tudo revela o cancro que se insiste em negar, se tenta esconder e se recusa a operar.
Nesta crise, que é mundial, este aspecto é o que distingue os casos português, europeu e japonês da experiência americana. No outro lado do Atlântico a loucura especulativa foi igualmente dominante e até mais enfurecida; mas quando a bolha estoirou, caiu tudo o que tinha de cair, sem contemplações ou favores. Liquidaram-se os negócios insustentáveis, transferindo recursos para iniciativas de futuro. Houve ajudas de Estado, mas tinham de ser, e foram devolvidas rapidamente. Ao fim de meses a economia estava a crescer. Por muito que se deplore os enormes defeitos desse sistema, há que admirar a transparência, eficácia e flexibilidade. Lá começou a crise que contagiou todo o mundo, mas foi lá também que a doença foi imediatamente reconhecida, diagnosticada e intervencionada com clareza e coragem.
Por cá o tratamento de choque do programa de ajustamento corrigiu os desequilíbrios e reestruturou a economia. Muitas empresas e sectores insustentáveis desapareceram, dando lugar a novos. O desenvolvimento não dispara devido a largos extractos económicos que, apesar do aperto, conseguiram e conseguem manter ilusões produtivas atrás de manipulações financeiras, graças a apoios públicos e favores privados. Esse peso morto chega para justificar a indolência do crescimento e a rigidez do desemprego. Pode dizer-se que a nossa economia está saudável e até tem recuperado bem do terrível choque da crise. O que estraga tudo é o parasitismo do vasto sector GES.

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